Miguel Wandschneider 

Numa pintura de 1997, António Olaio retrata Marcel Duchamp de perfil a perguntar “o que é que aconteceu a Henri Matisse?”, como quem pergunta por um velho conhecido de quem não se tem notícias há muito tempo. Olaio evoca assim, com uma ironia desarmante, os inflamados debates em torno da possibilidade ou, inversamente, do fim da pintura, que deixaram marcas indeléveis na história da arte (na produção artística, na reflexão sobre a arte, na história da arte enquanto narrativa), desde as primeiras vanguardas das décadas de 1910 e 1920 até às neovanguardas das décadas de 1960 e 1970, e que se reacenderam (também no contexto artístico português) na década de 1990. Olaio convoca Duchamp e Matisse como arquétipos (figuras exemplares) de duas posições artísticas tidas, durante muito tempo, como inconciliáveis e mutuamente exclusivas: de um lado, a arte como actividade conceptual e analítica, como crítica e subversão das convenções artísticas; do outro, a arte como produção de sensações e fonte de prazer sensorial. E faz alusão a uma leitura evolucionista da história da arte, segundo a qual o pensamento e a obra de Duchamp, tipificados pela invenção do ready-made e as proclamações antipintura, teriam relegado Matisse (a pintura tout court) para o passado – um passado sem reverberação nem ressonância nas práticas artísticas contemporâneas. Olaio não poderia estar mais afastado daquela concepção dualista da arte e do jogo de contrários que a sustenta. Como disse numa entrevista em 1994, “a intuição enquanto processo de rigor faz coincidir o conhecimento com a plasticidade, a filosofia com a sensação. É como a ideia, muito grata a Nietzsche, de Sócrates dedicando-se à música.”[1] Na sua perspectiva, não só Matisse e Duchamp não estavam em campos opostos, como se podem encontrar estreitas afinidades entre os dois: “a plasticidade aromática com que Duchamp trabalha os conceitos”, afirmou numa entrevista, “aproxima-o do Matisse mais do que de qualquer outro artista.”[2]

 A repetida invocação de Duchamp como referência não deixa de ser insólita vinda de um artista que sempre se dedicou à pintura (figurativa), que nunca se debateu com qualquer desconforto ou angústia relativamente a esse medium e à sua tradição (incluindo a tradição anterior ao modernismo), que sempre acreditou nas virtudes (até decorativas) da pintura. Logo em 1983, quando tinha vinte anos, Olaio deu a uma exposição individual sua o título enigmático Fernão Mendes Pinto visita Marcel Duchamp, patrocinando assim um insólito encontro (que as pinturas mostradas não esclareciam e muito menos ilustravam) entre aquele artista e a figura do aventureiro português que no livro Peregrinação narrou as suas viagens e façanhas pelo Extremo Oriente, no século XVI. Para outra exposição individual, em 1991, Olaio escolheu o sugestivo título Ma main, c’est un ready made, tirando partido do jogo fonético entre ma main (a minha mão) e maman (mamã). A referência ao ready-made era redobrada no primeiro verso de um pequeno poema que circulava como legenda ao longo de um conjunto de quatro pinturas apresentadas nessa exposição: “My hand is readymade/ My feet in a parade/ My heart is fading red/ My tears are small and sad”[3]. Dois anos depois, Olaio faria uma variação desse curto poema na letra da canção Rosebud, que compôs para um dos seus primeiros vídeos musicais (canção que viria a conhecer, posteriormente, uma versão muito diferente, composta em parceria com João Taborda, e que serviria de matéria-prima para um outro vídeo musical): “My hand is ready-made/ it’s a sculpture, don’t be afraid/ My heart is fading red/ it’s a rosebud, it’s small and sad”[4]. 

 A metáfora extravagante da mão como ready-made – como coisa que o artista recebe já fabricada – desmonta, com ironia e subtileza, a noção romântica do artista como ser de excepção, dotado de um talento e de um virtuosismo raros, que derrama para a obra de arte os seus estados de alma. Tanto no pequeno poema inscrito como legenda nas pinturas acima mencionadas, como nos primeiros versos da canção Rosebud, essa desmontagem de estereótipos profundamente enraizados no imaginário colectivo acerca da arte e do artista assenta na conjugação entre a objectividade levada ao extremo (a mão como objecto prefabricado) e um tom exageradamente confessional e introspectivo. Olaio iria retomar, vários anos depois, a mão como motivo num extenso e diversificado núcleo de trabalhos (pinturas, desenhos, uma canção e um vídeo) com o título My Left Hand Is Changing. Desta vez, a mão já não é declarada como objecto inerte, mas torna-se um órgão com vida própria, que escapa ao controlo do indivíduo (do próprio artista, poder-se-ia dizer, se a tomarmos como representação metonímica dele próprio). Diz a canção que, enquanto a mão direita está ocupada ou em repouso, a mão esquerda está a mudar, e são essas mutações que as pinturas e os desenhos representam ou sugerem.

 Como António Olaio explicita em várias entrevistas, e desenvolve de forma mais elaborada na sua tese de doutoramento em torno de Duchamp[5], o seu questionamento acerca da condição do artista (que se torna igualmente explícito noutras obras, como os seus auto-retratos alegóricos do princípio da década de 1990, ou as pinturas e a canção intituladas If I Wasn’t an Artist) enquadra-se numa reflexão mais ampla e complexa acerca daquilo que nos define como indivíduos. Desde o final da década de 1980, o seu trabalho é constantemente alimentado por uma perplexidade em torno da relação entre sujeito e objecto, entre a objectividade das coisas e a subjectividade dos sentimentos, ideias, representações e percepções, entre o mundo exterior e o mundo interior, entre determinismo e autonomia da acção e do pensamento. Questões que surgiam já condensadas, com a notável capacidade de síntese e de invenção de imagens que caracterizam o uso que Olaio faz do texto, na letra da canção Hot Mice, composta em 1987 para a banda Repórter Estrábico: “Your hat is thinking your thoughts/ Your gloves are drawing your drawings”[6].

 Na mira de António Olaio está sempre a realidade, encarada através dos seus aspectos banais, das ideias feitas, dos lugares comuns, dos clichés, muitas vezes ampliados e distorcidos até ao grotesco ou ao monstruoso. O modo como o artista desencadeia (e traduz em imagens visuais e/ou poéticas) inusitadas e inesperadas relações entre ideias faz pensar num cientista muito pouco ortodoxo que se diverte a experimentar as mais improváveis misturas de substâncias para criar novas realidades. Para esse efeito, aborda uma grande variedade de temas, explora media muito diferentes, utiliza as referências mais díspares (das eruditas às populares), cita os mais diversos géneros e cultiva um acentuado ecletismo estilístico (muito pronunciado na sua pintura). Nesse processo, vai expandindo e ramificando o seu universo criativo através de uma intensa circulação de temas, ideias e imagens mentais, de uma obra para outra, de um medium para outro, evitando qualquer efeito ilustrativo (que aniquilaria o poder de sugestão que pretende criar) e evitando a redundância. O que está permanentemente em jogo é a concepção da arte como experiência simultaneamente de reflexão e de prazer, como espaço de ilusão e artifício, como criação de mundos paralelos que abrem perspectivas intrigantes sobre a realidade em que vivemos, abalando a concepção humanista do indivíduo, revelando os limites dos modelos dominantes de racionalidade, expondo a natureza prefabricada (ready-made) das representações do senso comum.

 Como se terá percebido, além de ser pintor, António Olaio escreve canções e canta, e realiza vídeos para essas canções. Importa acrescentar que, nos primeiros anos da sua trajectória artística, mais precisamente, entre 1982 e 1988, ele se dedicou intensamente à performance. Em várias das suas performances, o artista aparecia a dançar e/ou a cantar (frequentemente em playback) sem sair do mesmo lugar, como uma espécie de representação caricatural de um artista de variedades, explorando uma desconcertante ambivalência entre a sua expressão imperturbavelmente séria e convicta e o ridículo das cenas assim criadas. Aquilo que lhe interessava com as suas performances era, essencialmente, construir (e desencadear no olho e na mente do espectador) uma imagem (no sentido pictórico) que fosse a síntese da sua acção e de todos os elementos (coreográficos, musicais, cénicos) nela orquestrados. 

 A prática de Olaio no campo da performance teve um papel generativo fundamental no desenvolvimento do seu trabalho posterior. Num primeiro momento, a performance levou-o a querer intervir criativamente no campo da música pop, o que veio a concretizar-se em 1986 com a formação do grupo Repórter Estrábico. Num segundo momento, igualmente marcante na sua trajectória criativa, a música foi o estímulo para a realização de vídeos que tomam as aparências de caseiros videoclips. Em 1993, depois de se ter desvinculado dos Repórter Estrábico e antes de iniciar uma parceria com João Taborda, Olaio compôs um conjunto de canções em que se apropria de discos anacrónicos de fundos instrumentais, pretexto para uma série de vídeos musicais em que a sua presença ostensiva a cantar e a dançar deixa transparecer fortes reminiscências quer das suas performances, quer das suas actuações em palco com os Repórter Estrábico (Post-Nuclear Country). Desde 1995, a prolífica colaboração com João Taborda – que deu já origem à edição de três discos – tem servido de estímulo ao artista para realizar numerosos vídeos musicais cujas qualidades pictóricas prevalecem sobre o registo performativo tão característico dos seus primeiros vídeos. Olaio encontrou no vídeo um medium extraordinariamente operativo para interligar e mesmo fundir diferentes tipos de prática artística (pintura, performance e música). Da performance à música, e desta ao vídeo, foram passos lógicos que contribuíram de modo decisivo para formar o universo criativo de António Olaio e os modos como o artista projecta o seu pensamento em imagens e sensações.

[1] “Sócrates dedicando-se à música (?): Entrevista de Victor Diniz a António Olaio”, Confidencias do Exílio, 1994, p. 21.

[2] António Olaio em entrevista a Vítor Diniz, in I Think Differently Now That I Can Paint, catálogo de exposição, Guimarães: Centro Cultural Vila Flor, 2007, p. 7.

[3] A minha mão é prefabricada/ Os meus pés numa parada/ O meu coração é de um vermelho a desbotar/ As minhas lágrimas são pequenas e tristes.

[4] A minha mão é prefabricada/ é uma escultura, não tenhas medo/ O meu coração é vermelho a desbotar/ é um botão de rosa, é pequeno e triste.

[5] António Olaio, Ser um indivíduo chez Marcel Duchamp, Porto: Dafne Editora, 2005.

[6] “O teu chapéu está a pensar os teus pensamentos/ as tuas luvas estão a desenhar os teus desenhos”.

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TÉCNICAS DE TRADUÇÃO: Tradução Simultânea

João Pinharanda

O universo de António Olaio sustenta(-se de) uma grande diversidade de objectos, técnicas e temas, e estabelece uma intensa dinâmica de funcionamento entre cada um dos elementos que o constituem. Ao mesmo tempo, expõe uma unidade discursiva perfeitamente coerente, continuada e articulada, obrigando o observador consciente a um constante processo de associação e a um activo grau de intervenção no processo de assimilação das obras.

Essa intervenção do observador (a hipocrisia da linguagem de democratização da cultura designa-a hoje por “interactividade” ou “participação”) nunca deixou ser necessária e sempre existiu (mesmo que não teorizada) em todos os momentos e em todos os níveis da história humana. No entanto, é certo que o empenho do observador na obra se tornou mais evidente e necessário nas etapas da arte moderna e contemporânea. Esta exigência cresceu na exacta medida em que o carácter ilustrativo dos temas e das formas foi sendo, de diferentes modos, rejeitado pelas vanguardas. E na medida em que as obras de arte foram ficando dependentes não apenas da vontade individual do criador (numa dimensão ainda romântica e pós-romântica), mas de um código exterior. Um código que, à partida, relaciona as imagens produzidas com reflexões verbais que lhe são laterais, ou prévias, mas determinantes: de ordem semântica, política, estética, filosófica ou outra. Os próprios elementos constituintes das imagens passaram a ser objecto de análise, por separação e interrogação dos seus componentes conceptuais, formais e cromáticos, materiais e espaciais, temáticos, sociais...

Podemos aqui sugerir que António Olaio participa num difuso movimento inverso. O modo, ainda que não perfeitamente claro, como a sua obra rejeita o destino analítico que referimos não surge, nem por ignorância das condições de criação contemporânea nem por militância anti-modernista. São as características próprias do seu método de recolha de dados e de alinhamento de trabalho que determinam quer o afastamento referido quer a dificuldade em classificar o campo de intervenção de António Olaio.

O certo é que, em vez de separar, António Olaio mistura, que em vez de analisar, sintetiza, e que, em vez de interrogar os elementos do (seu) discurso artístico no intuito de lhe eliminar as impurezas, interroga as possibilidades de integrar tudo em tudo. Mas não o faz subordinado às leis do acaso surrealista ou do destino romântico, embora a livre-associação seja uma das suas estratégias de trabalho. António Olaio não se subordina, pois, ao coração que combate a razão, nem explicita uma determinante insubordinação ética, estética ou política apostada em rejeitar liminarmente o formalismo, o belo, a neutralidade. Por tudo isso, António Olaio não se situa exactamente no reverso da realidade contemporânea, tal como ela existe e sobrevive enquanto sistema global; ocupa os seus interstícios. 

Nenhuma solução, nem a do irracionalismo pré-romântico e romântico, nem a do ilogismo dadaísta, nem a da sistematização psicanalítica, nem a rejeição situacionista, nem a sua soma, servem completamente o programa de António Olaio. Do seu processo de trabalho não resulta também qualquer atitude de amálgama indistinta ou eclectismo facilitador. De facto, António Olaio constrói as diferentes etapas e/ou facetas do seu discurso aplicando aos seus elementos constituintes (imateriais e materiais) a atenção permanente de um rigoroso conjunto de métodos pessoais de selecção e associação crítica, embora elas possam surgir “mascaradas” dos seus contrários. Tais métodos derivam de certeiras e velozes modalidades ou capacidades de relacionamento de níveis muito diferenciados de gosto e racionalidade, tema e medium.

É isso que lhe permite lidar e articular, sem rupturas, pares antitéticos, como sejam, por exemplo, a erudição e o kitsch, o vídeo e a pintura, a subjectividade memorialista e a intervenção cívica. Para além de um grau de “intuição artística”, que não nos pertence aqui esclarecer (nem talvez seja pertinente evocar numa análise deste tipo), António Olaio mantém e cultiva elevada consciência histórica, informada e crítica, relativamente à arte e ao social. Mas, principalmente, introduz ou exprime esse lastro de conhecimentos e de interrogação crítica através de um estilo (no sentido de uma retórica) de dimensão lúdica e humorística, de uma ironia vasta, derrisória e autoderrisória. Um dos mais claros testemunhos da táctica fusional que determina a obra de António Olaio surge na pintura em que Duchamp, através de um enorme balão de BD, pergunta, com sincera curiosidade, o que aconteceu a Henri Matisse. Dois pólos de uma possível (e real) oposição de valores e sentidos na arte moderna/contemporânea são assim unificados.

Por outro lado, António Olaio é autor da sua própria obra no mesmo sentido em que é actor na (dentro da) sua própria obra e em que cada diferente trabalho (ou série de trabalhos) funciona como conjunto de diferentes máscaras com que se cobre – dramaturgia que encena para cumprir o seu papel de actor. É esse complexo método de trabalho que justifica colocar a performance no centro do seu trabalho. Através desse recurso, António Olaio consegue integrar numa unidade discursiva dimensões comportamentais aparentemente inarticuláveis, como sejam a melancolia e o cinismo, a naïveté e a crítica; ou domínios, por vezes opostos, por vezes alheios, por vezes mutuamente ilustrativos, como sejam o verbal (palavra), o visual (imagem, abstracta ou figurativa, pictórica ou cinética), o sonoro (no sentido abstracto do que é musical, ou no sentido concreto do que é palavra falada/cantada) e o performativo, que tudo enquadra e para onde tudo converge.

Um dos traços de continuidade de António Olaio com o passado modernista é exactamente aquela exigência da presença consciente e não meramente intuitiva do observador e da sua participação. Ou seja, António Olaio necessita e exige a presença performativa de um observador ideal, tornado também actor: quer porque, ao ouvir as suas obras musicais/musicadas (concertos subtilmente encenados, como elemento da banda Repórter Estrábico ou já com João Taborda, ou complexos videoclips musicais), esse espectador é levado a investir o seu corpo na audição-visualização-interpretação dessas peças; quer porque, ao olhar as pinturas (cujos temas, cores e títulos ou legendas frequentemente repetem/anunciam as obras em vídeo), a memória das músicas associadas e do seu significado performativo renasce no seu corpo performativo. Mas, finalmente, o entendimento completo da obra de António Olaio necessita também do mais clássico trabalho de minuciosa interpretação das referências históricas que cifradamente o sustentam, mantendo assim uma ponte produtiva com a atitude crítica da arte moderna e contemporânea.

A performatividade que percorre e explica o conjunto da obra de António Olaio estende-se assim ao observador através de uma integração que se obtém quer por esforço intelectual quer por prazer sensorial-emotivo. Mas, ao contrário da tradição que o precede, António Olaio não parece procurar um público específico, com uma formação específica, antes se dirige de novo a um público abstracto e geral. Esta dimensão lúdica e de prazer é decisiva para garantir a viragem de ponto de vista de António Olaio relativamente à história que imediatamente o precede. Introduzida no domínio da performance, que foi/é um último reduto cronológico e conceptual da intervenção, desmontagem e análise modernista da obra de arte (da obra de arte em sociedade ou da interacção da obra de arte em sociedade com o público) esta estratégia de António Olaio ilustra de modo exacto um dos traços de ruptura com o universo da racionalidade dominante.

O princípio do prazer – embora não se trate de eleger um prazer rápido ou sensual, e possa mesmo tratar-se de um prazer macerado e melancólico – é elemento essencial na explicação da relação de António Olaio com o público, ou seja, com o espectador/observador da obra. Como se ela pudesse (ou desejasse afinal?) dispensar o peso do aparato histórico, teórico e intelectual necessário para “explicar” a generalidade das outras obras modernas. Como se lhe bastasse oferecer a linha de uma melodia simples, um verso que nos faz rir, situações cómicas de palco contrariadas pela presença séria do artista, para reivindicar para os seus trabalhos o estatuto da criação artística e a aprovação, a compreensão e a adesão por parte de todos os públicos.

Isto explicará, decerto, a permanente e central (nas formas, técnicas, cromias e temáticas) referência à pop art, que a pop musical, paralelamente desenvolvida no seu trabalho, esclarece e reforça. Do mesmo modo, persiste em António Olaio – através da reutilização de fórmulas e formas dadaístas e surrealistas, nas suas múltiplas soluções de associação e dissociação imagem/verbo – o desígnio simbolista de fazer ou de encontrar em todos nós poetas e artistas. 

De facto, António Olaio apresenta-se como um homem vulgar: expõe, nos seus vídeos cantados e musicados, nas suas pinturas legendadas e na articulação que, frequentemente, estabelece entre ambas, realidades quotidianas, situações banais. Mas ao oferecer-nos um discurso sedutor, do qual facilmente recebemos prazer intelectual e físico, António Olaio não está a assumir ou a transmitir nenhum processo de alienação pessoal nem de hipnotismo xamânico. Isto porque protagoniza essas cenas como personagem absolutamente comum ou mesmo ridícula. A frequência com que essa banalidade, dada figurativa e verbalmente, roça o absurdo, o patético e a impossibilidade, a frequência com que a narratividade dos seus longos vídeos-canções e das suas longas séries de pinturas nos conduz a um clima de inquietação, revela um desígnio de interpretação profunda do real quotidiano ou das regras específicas do universo do pintor e da pintura. Somos levados a perceber que o objectivo de António Olaio é o de, através da invenção de pequenos universos claustrofóbicos, onde se comporta como um deus menor, extrair lições mais vastas – críticas ao real e não escapes, críticas racionais e não mágicas. Na performance e no videoclip, António Olaio pode aparecer-nos como um Buster Keaton. O actor, que tanto poderíamos dizer ser alguém invisível para o mundo como alguém para quem o mundo é invisível, percorre impassível um real agressivo, sem manifestar qualquer indício de entender o que se passa em seu redor e o que a sua acção provoca, embora, de facto, domine, nesse alheamento naïf, toda a acção. Já ao nível da articulação verbal dos temas e da articulação dos temas entre si, essa dimensão de exposição crítica do real, e/ou de revelação da verdade por alheamento, parece desprender-se de personagens de Italo Calvino, de um Marcovaldo ou de um Senhor Palomar.

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 No contexto da multiplicidade de media utilizados por António Olaio, tentar perceber qual deles pode ser considerado determinante na análise das suas obras (ou melhor, qual pode ser definido como precedente) pode ajudar-nos a entender o seu projecto de trabalho. Tais elementos são: a pintura, onde a palavra escrita-lida é essencial como legenda e como imagem, a performance, a música, a letra e a voz que lhe surgem associadas, a composição e a encenação, que permitem articular quer o conjunto dos elementos que são da ordem das artes plásticas (as montagens das exposições), quer o conjunto dos elementos que pertence à ordem do espectáculo.

Não podemos deixar de notar o modo como António Olaio se afastou de um destino localista (de comentário local), que poderia ter sido o seu no contexto portuense dos anos de 1980 em que surgiu, e transformou o particularismo de todos os elementos iniciais da sua obra numa linguagem de intervenção global. Mas a resposta à questão que acima formulámos não necessita (deve dispensar mesmo) de qualquer esclarecimento historicista fornecido pela cronologia das diferentes obras de António Olaio. O que nos deve orientar é a certeza de que, no momento actual, não há uma disciplina precedente sobre as outras: a partir de 1984, nela se articula a pintura, a performance e a música, e, a partir de 1993, nela se integra o vídeo como medium capaz de unificar quer o registo das componentes música-letra-voz (que desenvolveu, primeiro, em performances e, depois, em concertos-performance), quer a linguagem pictórica, quer a linguagem de videoclipmusical e televisivo, quer a performance (a ordem é arbitrária). 

Devemos então esclarecer se, no que por facilidade de imagem literária designámos, logo no início deste texto, como “universo de António Olaio” ou que, ainda por facilidade e correspondência de linguagens (astronómica, filosófica e científica), podemos chamar também de “sistema António Olaio”, existe um centro em redor do qual gravitem as órbitas de tais diferentes disciplinas.

Não parece fácil, no actual estado de desenvolvimento fusional das obras de António Olaio, falar de um centro subordinador. Trata-se mais de uma lógica de rede, de um conjunto de elementos unificado por uma arquitectura próxima da de uma estrutura cristalográfica, que a multiplicação de facetas ajuda a compor. A existir tal força agregadora, ela deve ser identificada com a performance. De facto, a performance é essencial: como prática pessoal do artista, como prática mobilizadora da acção colectiva dos observadores (ou vontade de acção ou memória de acção) e como lição introduzida pelo próprio artista (e induzida por nós) na multiplicidade de disciplinas de que se compõe o seu trabalho. Essencial ao entendimento e à fruição da sua obra, a performancepode existir diluída num corpo de trabalho aparentemente tão fixo nas suas componentes materiais e formais como o são a pintura ou o desenho.

A vontade de pintura é desde logo, em António Olaio, uma vontade performativa. Não se trata exactamente de relevar o acto físico ou o momentum real em que a-pintura-está-a-ser-pintada-pelo-pintor. Também não se trata de registar qualquer efeito directo relacionado com o facto de o espectador ter visto uma pintura, ou de desencadear qualquer acção reflexa motivada por tal observação. Devemos, sim, considerar o movimento de vontade que conduziu o artista à(quela) pintura, que nos conduziu a nós à observação da(quela) pintura; considerar, finalmente, os efeitos (acções ou reflexões) provocados por aquela vontade criativa e por aquela observação crítica – o que recupera para a pintura o estatuto privilegiado de objecto activo.

Em virtude deste entendimento da pintura, percebemos como a maioria delas encerra um testemunho de acção ou uma chamada à acção (a call for action), apresenta ou favorece o surgimento de estruturas narrativas completas ou fragmentares (mas sempre abertas). De facto, a pintura permanece em António Olaio como referencial equivalente ao da performance, determinando os códigos de composição dos vídeos, do mesmo modo que a performance determina a sua temporalidade, e a literatura a sua narratividade. 

António Olaio obtém sempre soluções abertas, percorridas por indecisões de afirmatividade ou por dúvidas de figuração, desconcertos irónicos ou cromáticos, ambiguidades semânticas e formais. Esta realidade não impede que possamos considerar a sucessão de statements que percorre a sua obra como verdadeira exposição de manifestos programáticos onde a pintura, a vida (na sua dimensão ontológica, fisiológica e política) e a arte são inteligentemente interrogadas. Numa sequência de questões, que parodicamente enuncia com recurso a temas como a casa (enquanto lar e enquanto objecto arquitectónico), a agricultura, o retrato, a paisagem, António Olaio cruza o mundo do real (social e político) e o mundo da arte e do pensamento através de fenómenos como a telepatia, a materialidade dos sons ou determinantes séries sobre a mutação ou metamorfose dos corpos e a capacidade de acção e pensamento autónomos que as suas partes (cabeça, mão, coração) podem alcançar. 

No entanto, António Olaio parece troçar de si mesmo, desvalorizar o sentido do que propõe, ridicularizar aquilo em que acredita – actua como um tímido e inseguro (anti-)herói. Já tínhamos visto que é esse o papel que escolhe para si quando se apresenta como performer, no campo das artes plásticas, no da vídeo-arte, no do espectáculo musical. São fronteiras que, na sua obra, permanecem sempre indecisas, que tendem mesmo a esbater-se por completo.

No assumir dessa dimensão de expor um conjunto de verdades (um sistema interpretativo do mundo e um programa de acção individual/colectivo), menorizando-se, é interessante quer a solução de apresentação dos seus vídeos em monitores, como se de uma simples emissão televisiva se tratasse, quer a projecção em pequenas e médias dimensões. António Olaio estabeleceu assim princípios de (pequena) escala, de dimensão doméstica, que conscientemente reforçam os limites objectivos da sua linguagem (do seu fôlego e dos seus destinatários) e confirmam a mensagem que deseja estabelecer e transmitir.

A inicial solução do playback (aplicada até à peça Post-Nuclear Country) na descomprometida apropriação/reaproveitamento de músicas próprias e alheias, e mesmo a actual solução em que as músicas originais simulam, pela integração num poderoso universo musical (a country music), um real anonimato autoral e o uso de uma voz que se nega a todo o virtuosismo do canto, vão no mesmo sentido. As longas narrativas contidas nas letras das canções, e desenvolvidas nas colagens de imagens dos vídeos, são como lengalengas ou colecções de cromos, funcionariam quase como spellings mágicos se integrassem uma grande narrativa; mas, afinal, marcadas pelo absurdo crítico das letras e da associação crítica texto-imagem, mantêm-nos bem despertos e bem longe de qualquer irracionalismo xamânico ou alucinogénico.

O que no domínio verbal sabemos designar por jogos de palavras, trocadilhos e calembours (e que não devemos temer estudar segundo as regras autónomas da literatura) cruza-se com o domínio da visualidade, através das técnicas do ready-made, da livre-associação e do acaso, do cadáver esquisito, do cut-up e também da colagem, estabelecendo um trânsito entre campos de saber/fazer revelador de grande inteligência e capacidade de intervenção verbal-visual por parte do artista. António Olaio alcança esta dimensão comunicativa através de uma inventividade notável e da aplicação minuciosa do que poderemos chamar “técnicas de tradução simultânea”: entre o que se pensa e o que se vê, entre o que se escreve e o que se ouve, entre o que se faz/lê e o que se dá a pensar/ver.

 

Casas Queimadas, 30 de Agosto de 2009

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Antonio Olaio: Paintings With Soundtracks

Kenny Schachter

The formal component of Antonio Olaio’s art imbues painting with another dimension altogether for there are figurative paintings with overlaid text, accompanied by a music video sing-along. These multi-media constructions function as story telling devices with built-in soundtracks, revealing visual tales from deep in the artist’s subconscious. To look further into the work, it is helpful to speak about the person behind the making, as he is inserted, literally and/or figuratively into each and every piece by way of his starring role in a bespoke musical accompaniment for your added visual and aural satisfaction. Olaio’s songs are reductive affairs with usually no more than a simple, monotonous tune, while his paintings are like graphic, single-frame films, despite the artist’s protestations to the contrary. 

 Physically, Antonio Olaio is a cross between Kevin Spacey, Elvis Costello, and a dollop of Pee Wee Herman. The Pee Wee bit is manifested in his absurdist, Dadaist musings on everything, nothing and the plain weird. He’s twee and sometimes the effect is creepy, but at the same time affecting, touching and charming. The monotone singing can be a distraction, but also it hooks you and remains stuck in your mind’s eye. For Olaio, painting is not enough; perhaps he needed more DNA in the work than pigment on canvas alone could satisfy. The result is Antonio himself as the quirky pop performer, injected into each short film. It could be said to be rather exhibitionist and self-aggrandizing, but in the hands of the artist, it is equally pathetic and comic. Unlike Cindy Sherman constantly gazing into her own navel as her performative fantasies run amok, Olaio’s explorations are inextricably tied to his sense of self-identity. 

 In his art, Antonio Olaio is confident yet with low self-esteem, cartoonish and somber, haunting and goofy all simultaneously. He doesn’t seem to take himself too seriously, as reflected in this quote describing one of his works: “This song sounds quite serious, almost pompous, but fortunately it's quite silly in its pretentiousness.” The sense of insecurity is palpable as the self-deprecating nature of the person that lies beneath the work is evident, but Olaio fearlessly faces failure by positing himself front and center in his compositions time and again.

 As much as the significance of the images, both moving and still, the bizarre word groupings always arrest us.Maybe the language is as confusing to him as it is to me, maybe it’s lost in translation; scarily maybe it’s not and this world of societal absurd-ism is completely normal, knowable and understandable to Antonio. But I don't really care about Olaio’s intended meanings, his verbal cocktails are so rich and flavorful they elicit all manner of existential associations. 

"Brrrrrain" the title of the exhibition brings to mind a brain freeze, also known as an ice-cream headache, a momentary seizure-like ache due to excessive cold or god knows what. The wonderful works of Antonio Olaio, consumed too fast like a child attacking a delectable treat, will bring on joy and confusion, pain and pleasure! The artist calls it punk, which is not something I admit to seeing, unless of a variety so sublime it is beyond me.  What I see is cute, harmless, a tad annoying, with flourishes of slapstick, though most definitely eerily unsettling.

The paintings are of a school I call Good Bad Painting, not a photorealist variety of figuration, but colorful, alluring, gripping and graphic, in the vein of the Chicago

Imagists, a group of surreal representational painters like Jim Nutt, Roger Brown and Ed Paschke. The genre of this painting style grabs you by the throat with acidic colors and completes the assault with grotesque imagery.

 Olaio adds to this mix by incorporating word play and songs into his art: it’s music and lyrics as sculpture, turning a tune into an object as weighty as bronze. Sound and vibration take on the characteristics of paint and brush. In the videos, there is not much happening visually but there is always the distinctive, frog-y moan to catch and hold your attention. The videos have crude production values, as the funerary, atmospheric melodies fill the background. And the songs…often they have the drone of Serge Gainsborough, Leonard Cohen and Lou Reed with some of the kooky-ness of John Cage. Yes, it can be Irritating but then it sticks in your craw like all good music and art. Ultimately, though, the music works; it stands out as an accomplishment in and of itself. 

Only Antonio Olaio can find the “nasty” side of butterflies, and here are some reflections on his titles and wordplay…

“My dreams are small and sad.” Sad maybe, but the work of Olaio is far from tragic. Melancholic and filled with a sense of longing and dejection, the art carries with it a component of built-in failure. Is Olaio a misfit? I’d say most definitely not, rather in the manner of both the writer Samuel Beckett, and the singer Beck, he’s an existential troubadour, a combination of the two. Antonio seems to say: I’m a loser baby, so why don’t you kill me.

 “My hand is a readymade.” It’s as if the act of making art for Olaio is independent of his will, an action beyond volition. There is a sense of pre-determinism, of nature having the upper hand in the perennial nature vs. nurture debate in sociology. This notion of an art practice operating outside of personal choice is also evident in the title: “If I wasn’t an artist what would I be.” For Olaio, art making is preordained and outside the realm and luxury of choice. 

 “I think differently now that I can paint.” Though for Olaio the capacity for art is something you are inextricably born with, nevertheless, honing those skills is akin to a blue-collar job and entails a diligent, puritanical work ethic. It takes tenacity, perseverance and doggedness, and even then success is not assured, far from it, especially in trying times. The process of art, in whatever form it takes, often involves (despite perceptions otherwise) routine, task making and administration that does not exactly live up to the romantic idea of an artist in the throes of the act of creation. Art making for Olaio also equals intellectual enlightenment. 

 “Broadcasting my songs.” Here we have signs of another vain, megalomaniac artist insisting on speaking to the world at large, yet in the same-titled painting, besides the declarative text beneath the image of a microphone, there is also the depiction of knotted and impossible to function wiring. So there is self-love, but it is coupled with a vanity that is at times also self-negating.

 “Pictures are not movies.” Hah! I hate to be the one to break the news to Mr. Olaio, but if ever a picture was indeed a movie, it is here. These are one film-cell films. Anyway, regardless of what Olaio insists, often; as is the case here, artists are sometimes the least capable of analyzing their own work. So please forgive me for taking the liberty of looking elsewhere for interpretations and meanings in this art. 

 “Bambi is in jail.” A stranger juxtaposition of words does not exist: an unpredictable statement that is equal measure demonic and whimsical but simultaneously deliciously cruel.

 “Sit on my soul.” In this painting, we are faced with a pinup, nude and voluptuous, striking a provocative pose. The title expresses the yearning not for a quick sexual fix but rather a solicitation to quench Olaio’s intellectual and spiritual curiosity. This work has also got a taste of Olaio looking inside some impenetrable room at others having more love, fun and success then he will seemingly ever enjoy. This is as close as Olaio will get to frontal sex in his paintings and videos, but it is a distracted and abstract longing rather than any consummation. Love, but more likely lost love, a denial of love. “Three pounds of wine and she loves you.”If that doesn’t say it all I don’t know what does.

 “Potatoes are sweaty.” With such disjointed evocations, sometimes Olaio can be plain gross and disgusting, like a certain genre of teenage movies. I guess that is where Antonio wants to take us, on a journey as absurd and surreal as Willy Wonka (the original version) with as much perverted, misguided fun.

 “Wicked teachers.” This is Olaio’s questioning of authority both in art and otherwise, but always with the perspective of an insatiable, curious, though naughty child. That for me is the essence of the work: it is the product of a jaded, twisted but always humorous existentialist take on life, and you can feel the sense of joy and release he seems to enjoy in the process.

 The videos, songs and paintings of Antonio Olaio taken as a whole seem a poor excuse to stand on a soapbox shouting at all who will listen to convey an utterly unique voice that is nothing less than enchanting and fantastical. It’s an all-encompassing philosophy of life seen through a multi-faceted language of whimsical imaginings. In the end, Olaio has sung, written and painted his way deep into our heads, hearts and souls.