Rita Manhães - Da pintura como fluxo contínuo

O observador se encontra diante de uma pintura em grande formato. Na superfície da tela, formas e manchas em cor, abstratas, são organizadas como “ecossistemas”, constituindo um meio em que espécies diversas convivem, nutrem-se, movem-se, relacionam-se. De uma tela a outra, abrem-se situações – paisagens, recortes, conjuntos – em que o espaço pictórico afirma-se como “espaço de convívio”, de dinâmicas embaladas por ritmos distintos. Assim, elementos gráficos encontram-se lado a lado, e por vezes imbricados, envolvendo-se e enrolando-se uns nos outros como dobras, apêndices, cachos, tentáculos...

Singularidades são aqui preservadas, mas cada parte existe em relação com as demais. As imagens construídas por Rita Manhães remetem a uma estética das formas orgânicas de um universo científico inventado, poético e necessário – porque é, sim, um espaço de sopro, alternativa ao mundo das coisas cruas, finitas, concretas.

Liberdade, espontaneidade e a intensidade do gesto, que pressupõem a implicação efetiva do corpo da artista durante o processo criativo, marcam a poética de Rita. Da mesma maneira,a musicalidade inerente às composições plásticas nos induz vislumbrar coreografias que se sucedem, de uma tela a outra, em continuidade. A musicalidade sugerida nas pinturas pelos ritmos mais ou menos intensos ou suaves, também, reforçam a tese do engajamento e envolvimento corporal da artista durante a realização das pinturas.

E, sem surpresa, constatamos que suas referências nos remetem à história recente da liberdade gestual em pintura: Albert Oehlen, Cecily Bown, Cy Trombly, Robert Rauschemberg e uma admiração particular pelo expressionismo abstrato, Franz Kline, Sam Francis ... Rita mostrase íntima de propostas que usam o artifício pictórico para produzir impacto, sensação intensa de movimento, de vigor, que são propostas nas quais a cor é elemento que se expande e se revela na diversidade formal.

A artista confia a nós sua curiosidade acerca “do infinito contido nas coisas finitas”. Essa prerrogativa – quase que um mote poético-filosófico –, por sua vez, remete ao fato de que o infinito contido nas coisas finitas é inerente à experiência sensível. A pintura, por exemplo, é o lugar em que o infinito das coisas faz esquecer a finitude que nos determina. E, curiosamente, a leitura do conjunto da obra de Rita Manhães nos coloca num processo contínuo, num ad infinitum, que evoca a renovação, e a multiplicação incessante das coisas do mundo. Além de uma dinâmica que desenvolve a plena musicalidade, num ritmo intenso de “formas-de-cor” e “manchas-cor”, em que a cor se assume como “corpo”, como “coisa”, percebemos, nas pinturas, um sopro contínuo, responsável, talvez, pela constatação de que cada quadro realizado por Rita é fragmento, componente, de um todo maior e infinito.

Suas composições deixam transparecer a ideia de “fluxo contínuo” de ações, de acontecimentos imanentes que o trabalho da artista ativa, pelo simples gesto de inscrição do pigmento na superfície da tela. A arte – e, neste caso, a pintura – seria, de acordo com essa lógica, princípio ativo, sopro primeiro e dispositivo de acesso a um conjunto de situações plásticas e possibilidades sensoriais até então em “estado latente”, adormecidas.

Fabiana de Moraes, abril de 2016