À beira do fim haverá um objeto
Pedro Pousada


A atividade humana produz objetos, transforma a matéria; dos lugares mais inóspitos e vis vai buscar, à custa de exércitos de explorados, os nutrientes para fabricar, até à exaustão dos recursos, a tecnologia que produz a tecnologia que vai accionar a máquina que imagina novos objetos, novos recipientes, novas estruturas de estar e existir. E na sua deriva de emancipação e posse a atividade humana busca encontrar uma solução que funcione para tudo e para todos. Mas essa busca que é desejo e voracidade tornou tudo num inescapável consumível. O tempo e o espaço tornaram-se exíguos e insuficientes para gerações de objetos úteis, intencionalmente inúteis, de inutilidade recentemente adquirida, de utilidade revisitada. Mas o arcaismo prematuro, inventado à força pela industrialização capitalista (já sabemos há muito que a escassez e a sobreprodução são dispositivos essenciais na mobilidade inerme dos objectos) não eliminou uma evidência:os objetos duram porque são reverberações mnemónicas do vivido, do que já foi - e como é difícil, doloroso, largar o que já foi-os objetos não são sistemas fechados; a sua ontologia não está no passado mas no que pode ainda vir a ser. É com esta premissa que me aproximo da obra artística de Felipe Barbosa e das decisões instalativas que caracterizam esta  exposição em concreto.

Há algo de filólogo, de um filólogo pragmático perante a entropia, neste empenho de Felipe Barbosa de não só acumular múltiplos objectos e elementos banais que são afinal epifenómenos da incessante produção capitalista, da incessante certeza ecocida, mas também de os reconfigurar e alterar de forma irreversível. Um livro, em "Geometria Descritiva" (2020), que já não é o repositório instrumental da teoria de Gaspard Monge mas a evidência da sua natureza estranha e invisível no mundo das coisas vivas; uma bola de futebol, "Na Pressão" (2020), que jamais terá a cinética violenta do jogo na sua superfície-pele; uma garrafa de Coca-Cola que contém como uma matriochka outra num ensimesmamento de vazios contidos; rolos de listas de débitos, de faturas de compras e de todo esse colete de forças de papéizinhos que substituiu a ideia de cidadão pela do consumidor-pagador:"Economia Doméstica" (2020) parece avisar-nos num vórtice de minudências que já nem sequer existimos porque produzimos mas sim porque pagamos: casinhas de plástico presipificadas como metáfora do caldeirão prometido no fim do arco-íris ("Casa-forte" é  um título adequado a essa promessa larvar e inacessível de felicidade e abundância).

No já longo e complexo percurso artístico de Felipe Barbosa encarnam-se, por vezes com um humor subtil, conflitos próprios do ato criativo sendo talvez os mais prementes, o problema do original e da serialização, a desfamiliarização do reconhecível, a nítida separação entre uma forma (com contornos por vezes lúdicos, recreativos, e cujos efeitos são contagiantes no plano estético) e uma semântica do algo mais, da ambiguidade poética que nasce quando queremos criar uma imagem para aquilo que não se esgota na imagem. Mas também encontramos nas suas diferentes propostas uma tangência aos ruídos omnivoros da sociedade da mercadoria espectacularizada, da sociedade que Marx reputou como mais dedicada à preservação dos objetos, mais prenhe de força anímica para amar os objetos do que capaz de salvar as subjetividades.

Aqui podemos constatar que nada está perdido, tudo se desdobra em novos estados de luz e de dor, de metafísica e economia, estados de uma liberdade com hermenêutica e leis cósmicas e estados de outra liberdade, selvagem, sem parentesco, sem nome próprio. Os objectos são uma segunda vez a liberdade que não lhes foi dada da primeira vez. A cultura material é para Felipe Barbosa a evidência de que, como no recinto funerário egípcio, fazemos da acumulação e posse da forma plástica, da nitidez das coisas que nos chamam da montra como sereias, que fazemos delas anexos mórbidos da subjetividade, nossa, que não conseguimos compreender, do vazio que há em nós e que queremos que desapareça. O que o seu gesto artístico acrescenta é que nesse terreno movediço, na Xanadu do Citizen Kane que o cartão de crédito promete, que nesse terreno é possível recriar as variáveis dessa morbidez, desse desejo de guardar, desse desejo de tornar compreensível o que não nos guarda, aquilo que se desprende de nós. E é nessa reconfiguração, nessa violência da arte combinatória, do "objet trouvé", do "as found", da materialidade selvagem, sem parentesco, que podemos aprender a rir dos objetos em que nos tornamos. Sim, a experiência, para mim, do trabalho de Felipe Barbosa, não é o da simpatia perante o espetador - utilizador à procura de respostas rápidas mas a do espectador que busca na prateleira de um supermercado, no fundo esquecido de um corredor de um armazém de retalho, na displicência anarquista de uma feira da ladra, um instante, uma duração para poder comover-se com a dor dos objetos que se tornaram uma doença humana.

Centro Cultural São Paulo – SP  2004
José Augusto Ribeiro

Uma vez que o lado do hexágono regular é igual ao raio da circunferência imaginária que o circunscreve, é possível pensar na relação entre continente e contido para as duas formas geométricas. Transpostas à dimensão três, as figuras aparecem na Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges, cuja arquitetura é uma esfera (continente) cujo centro é um hexágono (contido) “cuja circunferência é inacessível” – e neste reverso, o polígono passa a ser o continente, até mesmo na acepção política do termo.

Tal associação, aplicada ao caso de uma bola de futebol, resulta em semelhante sistema de “boneca russa”: a pelota é o continente, constituído por gomos de couro hexagonais, que por sua vez protegem o contido, o núcleo, o “centro cabal” responsável por reter o ar: a câmara de borracha – esférica quando cheia. Indo mais longe na elucubração, quantas bolas seriam necessárias para preencher o estádio do Maracanã? E quantas bolas seriam necessárias, ou melhor, quantos gomos de couro destas bolas, já planificadas, seriam necessários para revestir a superfície do gramado?

O cálculo dependeria das características das bolas, das dimensões dos gomos... Mas isto não é tarefa para as linhas que se seguem. Aqui importam mais a idéia e a imaginação que ela desperta. O devaneio ganha um pequeno (em escala) correspondente real com Bola (2004), de Felipe Barbosa, um painel de 2m x 4m, feito a partir dos gomos de 75 bolas de futebol desmanchadas.

Passo a passo: o artista esvazia as bolas, descose os hexágonos de couro em pontos determinados e costura o conjunto para estendê-lo sobre paredes, transformando em plano o que era volume de globo. Parte de um procedimento contrário ao da escultura clássica, a desconstrução do volume, e chega a um resultado de qualidade pictórica, em que se misturam emblemas de time de futebol, logomarcas e outros elementos gráficos.

O inverso desta metamorfose espacial processa outros dois trabalhos com ladrilhos de cerâmica, também hexagonais, usados para o revestimento de pisos. Nas fotos de Piso 3-D (2002) e na escultura Mosaico 3-D (2003), o artista apresenta sólidos criados com cimento e ladrilhos sobre um chão revestido pelo mesmo material, como se as peças hexagonais se unissem para sair da contigüidade planar das duas dimensões e alcançar o espaço tridimensional. Daí, figura e fundo se misturam.

Embora o método de empregar objetos com função definida na constituição de outros não-reconhecíveis no mundo seja similar ao de trabalhos anteriores do artista, nestes, Felipe Barbosa não opera com as coisas que têm utilidade unitária – a matéria-prima não é mais o fósforo, nem o prego, nem o guarda-chuva, nem o esquadro. Um gomo de couro ou um ladrilho não são funcionais quando isolados de seus pares seriais, e só a instituição de uma nova ordem para cada conjunto de unidades faz da forma a função destes elementos.

Um garoto dourado
Daniela Name

Impossível entrar na Galeria 2 do Espaço Cultural Sérgio Porto e não se deixar seduzir pelo brilho dos trabalhos da série “Mapas” de Felipe Barbosa. O dourado que salta das paredes lembra outros tempos — Klimt, ídolos bizantinos — mas o autor tem os pés bem fincados no século XXI. O brilho de “Mapas” não vem nem da tinta e nem do ouro, mas de centenas de chapinhas de cerveja e refrigerante que Barbosa recolheu nas ruas, como se fosse um catador de lixo. Aos 25 anos, ele vem se transformando numa das grandes revelações da arte contemporânea carioca justamente por trabalhar com materiais e objetos corriqueiros — palitos de fósforo, martelos, pregos, bilhetes de metrô — e inventar com eles objetos e instalações que recuperam ou brincam com sua função.

Foi assim com as esferas feitas de fósforo que se transformaram num dos trabalhos mais comentados da Mostra Rio Arte Contemporânea, em abril do ano passado, no Museu de Arte Moderna. Foi assim também com seu “Martelo de pregos”, um dos destaques do módulo do ano 2000 da exposição “Caminhos do contemporâneo”, que entrou em cartaz meses depois, no Paço Imperial.

 Pintura feita de chicletes mascados de várias cores

Rosto de garoto e fala mansa, Barbosa parece sempre pensar não uma, mas cinco ou seis vezes antes de falar. Formado em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, ele vive e trabalha num pequeno e charmosíssimo apartamento em Santa Teresa, que divide com a mulher — e parceira em numerosas obras de interferência urbana — Rosana Ricalde. Enquanto mostra o já gorducho portfólio com fotos dos trabalhos desenvolvidos desde o início dos anos 90, ele conta que a opção pela arte surgiu ainda na infância, quando resolveu ter aulas de desenho quase por impulso, seguindo o exemplo de amigos.

— Embora não desenhasse perfeitamente, acabei gostando daquilo — lembra ele, que acabou optando por Belas Artes na hora do vestibular, contrariando a linhagem de uma família cheia de médicos. — Minha mãe ficou preocupada. E eu entendo perfeitamente, porque não sei se ia querer que o meu filho fosse artista. Ainda mais porque, no meu caso, nunca pude contar com a grana da família para me estruturar e tocar minha carreira.

Ele tem uma rotina simples, em que perde cada vez mais espaço de sua vida doméstica ao acumular trabalhos na “reserva técnica” de seu apartamento-ateliê. Passa os dias trabalhando e, atualmente, revezando-se com Rosana na elaboração dos “In Classificados”, jornal patrocinado pelo Sesc que vai ter uma tiragem de 15 mil exemplares, circular pelas cinco regiões do país e reunir trabalhos e textos de artistas, críticos e curadores do Brasil inteiro. Quando a fome aperta, os dois sacolejam no bonde e encaram um prato-feito de comida caseira de um dos restaurantes do bairro.

Hoje, sua mãe já relaxou, ao constatar que o filho leva a carreira a sério. Logo no primeiro período da faculdade, Barbosa já se enfurnava no ateliê coletivo e produzia compulsivamente. Acabou ganhando bolsas para estudar em Madri e em Paris, onde aprofundou sua pesquisa relacionando pintura com materiais vulgares, descartáveis. Os trabalhos da série “Mapas” foram concebidos na Europa, onde chegou a fazer telas em que as pinceladas eram substituídas por chicletes de várias cores previamente mascados. A forma final de um destes trabalhos lembra os círculos concêntricos de Robert Delaunay em seus estudos de cor. Pintura pura, mas sem haver necessidade de tinta e cavalete.

— Ganhei uma bolsa para estudar pintura na Espanha, mas me perguntava o tempo inteiro que razões eu teria para continuar pintando do jeito tradicional. Nunca encontrava a resposta — diz ele. — Foi aí que descobri que podia pintar com outros materiais. Com o chiclete, a pincelada passava a ser cada unidade mastigada. Uma pintura ready made , criada a partir de uma coisa industrializada.

Com Rosana Ricalde, a parceria de vida e obra

E também trazendo em si a memória do corpo, com a saliva e o toque. Barbosa é um exemplo desta outra pintura que surge entre o fim dos anos 80 e o início dos anos 90. Orientada por um projeto conceitual, não usa necessariamente a tinta, mas continua se relacionando com as questões pictóricas (cor, luz, bidimensionalidade) e com a história da arte. Na série “Mapas” isso fica claro, já que os trabalhos com chapinhas, visualmente belíssimos, também são um índice de consumo. Ao recolher as chapinhas, Barbosa cria uma espécie de estatística de que marcas são mais ou menos bebidas em cada região. E faz a área da marca hegemônica praticamente fagocitar as outras marcas/cores, o que fica claro, por exemplo, no trabalho em que mostra a supremacia da Coca-Cola.

O trabalho de Barbosa se espalha por outros meios e questões. E guarda uma característica reincidente — o jogo entre forma e função. Em “Martelo de pregos”, o martelo é constituído pelos elementos que justificam sua existência, sua função no mundo, ou seja, os pregos. Estudioso de geometrias, especialmente dos sólidos platônicos, ele também já criou icosaedros e dodecaedros feitos a partir da união de esquadros e guarda-chuvas.

— O que faz a obra de Felipe ser extremamente potente é a união de frescor com uma grande maturidade — acredita Marisa Florido, que assina o texto de apresentação de “Mapas”.

Potente o suficiente para conseguir se misturar generosamente a outro trabalho potente. Foi fazendo obras de arte públicas ao lado de Rosana Ricalde que Barbosa acredita ter tido a real consciência do que é arte contemporânea. Os dois se conheceram num ateliê coletivo em Niterói em 1998 e estão juntos desde então. Fizeram sucesso ao criar, há três anos, um muro feito de sabão em pedra para o projeto “Interferências urbanas”, em Santa Teresa. Ainda no bairro, criaram uma imensa trança descendo do prédio do colégio Ceat (“Rapunzel”), a “Casa enterrada” no Largo das Neves e levariam um poema de Augusto dos Anjos para a escada ao lado do prédio onde moram. Destruída por uma reforma da prefeitura, a obra foi refeita por iniciativa dos moradores.

— Rosana é minha parceira de vida e obra. Aprendemos juntos que, para um trabalho em dupla acontecer, é preciso se enriquecer com o olhar do outro — ensina Barbosa.


Segundo Caderno - O Globo / Rio, 15 de Abril de 2003




O colecionador e o cartógrafo
Marisa Flórido Cesar

     

Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer

diferenças, é generalizar, é abstrair.

Jorge Luis Borges

Funes, o Memorioso

 

 Por que esse e não aquele pequeno objeto seduz o colecionador no breve instante em que, pela primeira vez, os olhos percorrem, curiosos, sua superfície? A delicada estranheza, seus contornos bizarros, sua feição prodigiosa... Talvez um pequeno brilho que reluz fugaz, mas que o destaca em meio a outras coisas que circulam distraídas pela espessura do mundo. Ou é sua esquiva tímida, quase desapercebida, que atrai o seu afeto?

 O colecionador retira o objeto de sua órbita vital, afasta-o de seu uso quotidiano e de sua prescrição prosaica. Protege-o em meio a outros em uma série: cerca-o em sua paixão meticulosa, precisa, metódica. O resguarda em uma nova ordem. Nem sempre a relação que essa reunião de objetos consuma — objetos por vezes distantes e alheios entre si — resulta clara para aquele que observa sua apurada operação. Em torno de cada objeto seqüestrado do mundo escava-se uma espécie de silêncio: um espaço que não se preenche, salvo pela proximidade a outros que, com ele, integram a coleção. Salvo talvez pelo próprio ato de colecionar: é a série que deverá organizar, classificar, conservar, memorizar.  Mas nesse seqüestro que retira o objeto do mundo e o resguarda em uma memória, é necessário um esquecimento.

 Gabinetes de curiosidade,  galerias de prodígios e de arte, são precursores do museu. Talvez encontremos, no Renascimento, as genealogias mais explícitas desse fenômeno da cultura ocidental: a coleção — a acumulação e a classificação do estranho em uma unidade, em uma totalidade privada. Objetos bizarros cintilariam então em preciosas vitrines: muitos trazidos pelas grandes conquistas das navegações a alargar fronteiras territoriais e étnicas, a demandar cartografias cada vez mais precisas.

 E aqui se encontra o outro personagem desta fábula: o cartógrafo. Como o ato de colecionar, o de mapear exige uma abstração e uma reserva. O colecionador acumula objetos, o cartógrafo reúne informações. Mas se a coleção abstrai o objeto de seu lugar ordinário para introduzi-lo em um sistema particular, o mapa representa, em um plano, informações referenciadas ao espaço de sua localização.

 Uma sorte de escrita, a cartografia descreve as visões de uma época tanto do espaço físico como do mundo em geral. Sua abstração, contudo, é de outra espécie: as linhas que se desenham sobre a superfície bidimensional do mapa são fronteiras abstratas na carne do mundo, tramadas por conflitos de diversas naturezas. Os limites territoriais que se traçam sobre o plano têm uma dimensão temporal, uma profundidade histórica. Uma história de disputas, de poder, de apropriações. Uma terceira dimensão que não aquela da perspectiva pictórica. Poderes controlam os fragmentos: aglomeram-se as identidades da língua, do costume, da cultura. Coleções particulares que constroem as ficções das totalidades e excluem, de seus espaços circunscritos, o outro estrangeiro.  Mapas codificam o espaço, nomeiam seu solo, mas não o decifram. Não desfazem os desvios entre a abstração dos códigos e o concreto da existência.

 Os objetos que Felipe Barbosa recolhe não são raros ou singulares. O artista não os coleta para inseri-los em uma série. Ao contrário, são pequenas unidades produzidas em série que exalam a fantasmagoria anônima da cópia que viveu seu breve ciclo de vida útil e agora repousa por aí, confundida na indiferença dos detritos, no purgatório das ruas. São vestígios da opulência, da cultura da acumulação, do excesso e do desperdício: tíquetes de metrô, tampas de garrafas de bebidas recolhidas pelas cidades em que permanece ainda que por alguns dias, por algumas horas, por alguns instantes: Rio de Janeiro, Fortaleza, Madri, Paris... Fragmentos que já habitam o universo das sobras e dos esquecimentos: é justamente sua condição residual e repetida que o atrai. 

 Os pequenos objetos resgatados pelo artista riscam, por sua vez, outras cartografias: os tíquetes tecem sobre o suporte da tela o labirinto subterrâneo dos metrôs, o desenho que se oculta da superfície das cidades. Cada tíquete não deixa de ser um signo indicial, perfura a superfície da tela em memórias distintas: basta um breve esforço para imaginarmos as mãos que o acolheram, os caminhos ao qual serviu, os encontros que quiçá proporcionou. Fragmentos que, se à princípio parecem querer resgatar o contínuo do tempo e do espaço, não nos liberam da condição esquizofrênica da vida contemporânea. Aludem às profundidades de vários tempos e espaços, a outras camadas arqueológicas. Não devolvem a temporalidade orgânica da História e seu ciclo linear das causalidades, a identidade do sujeito, a unidade do espaço, a contigüidade da linguagem. Sua estranha estratégia enfatiza o colapso, a dubiedade dos signos e os lapsos na significação: sublinha as descontinuidades. Os mapas que resultam não nos devolvem a um todo simbólico, à intuição de um sentido absoluto: a justaposição de fragmentos é alegórica, dispersiva, sua significação permanece incompleta e oscilante.

 As tampas de bebidas disputam, por sua vez, os territórios do chassi. Uma unidade de cada marca, depositada aleatoriamente sobre o plano, inicia a expansão das esferas de consumo. Em círculos concêntricos, rivalizam as fronteiras das marcas de cervejas e refrigerantes consumidos na ocasião da estadia do artista em uma cidade. O tempo de preenchimento do quadro confunde-se à duração de sua permanência ali. Não correspondem ao exato lugar onde descansavam esquecidas. Nem poderiam: estes desaparecem nos fluxos desterritorializados da economia globalizada. Uma abstração, mais violenta que aquela da coleção ou da cartografia, se instaura: tudo se equivale no plano da mercadoria, em seu sistema de trocas, nas superfícies sem solo e sem memória do consumo.

 Ou antes, os mapas do artista revelam seus paradoxos: a memória também se globalizou, comercializa-se na indústria cultural do ocidente. Onde situar a responsabilidade dos atos coletivos, o exercício político da memória? O mundo se musealiza, as cidades reivindicam seu gabinete particular, competem entre si pelo prestígio de guardar suas coleções.

 Poderíamos mapear as genealogias dos Mapas de Felipe Barbosa: Duchamp parodiaria com o ready-made a operação do colecionador – retiraria um objeto de seu contexto quotidiano, para inseri-lo na coleção da Arte e assim profanar seu sistema. Ao silêncio exalado dessa subtração, o artista agregaria o nome Arte.  Mas estamos mais próximos da ironia pop e suas incursões sobre o domínio da série: os mapas do artista não devolvem à existência ensimesmada da pintura moderna, como uma totalidade fechada e auto-referente.

 Ora, a pintura abstrata com suas especulações formalistas não teve lá sua coleção particular de ficções? — A asserção do espaço bidimensional como identidade indubitável da pintura, a reivindicação do tempo como o momento excepcional da recepção estética que se dá no encontro extasiado com o objeto de arte. Um tempo sem duração, comprimido em um instante que prometia a suspensão de seu fluxo irreversível. Um imediato que violava e traía o próprio tempo.

 A superfície aqui não é o plano ontológico da pintura, talvez o desencanto espectral do indiferenciado da série e as uniformidades sem solo da globalização. O tempo tampouco é o imediato do êxtase estético: este se dilui se multiplica na alusão nos prazeres fugazes e mundanos de uma bebida gelada. Breves memórias. Como então não desconfiar igualmente do presente? Da reivindicação do agora na duração da experiência? O presente intensificado está intricado ao volátil da mercadoria; o agora, ao imediato do consumo.

 Suspeito, afinal, que a paixão do arquivista tem sua própria mecânica, uma sistematização das obsessões, uma fixação do pensamento ao objeto ao qual se endereça sem parar – a paixão tem sua racionalidade específica.

 Suspeito, afinal, que método do cartógrafo quer mapear  o que é próprio da memória, da temporalidade e da espacialidade atuais, que não sucumba indiferente às abstrações fáceis do consumo. A razão tem sua paixão específica. Por isso é necessário pensar  outros tempos e espaços, uma outra prática da memória e do esquecimento. Por isso, são necessárias, outras abstrações.

Galeria Sergio Porto 2003

 

 

 

Um pouco do mundo no Paço
Wilson Coutinho - O Globo

 

Um claro reflexo de que se faz boa arte contemporânea no Rio é a mostra “O fio e o espaço”, no Paço Imperial, com curadoria de Lauro Cavalcanti, que soube, a partir do tema, aliás puramente plástico, escolher 11 artistas, que o seguiram com certa fidelidade — alguns deles, é claro, divergindo um pouco sem deixarem, contudo, de realizar obras com impacto, inteligência e humor. Alguns podem ser uma grata revelação: como o carioca Felipe Barbosa, por exemplo, de 25 anos, que reúne o charme da fina ironia, elegância formal e tem o prazer de estimular desordem à geometria e deixar o construtivismo em apuros. É como se o Coelho Maluco de Lewis Carroll oferecesse alguma objetividade ao mundo.

É impossível evitar o riso com o seu pequeno boneco, de alguns centímetros de altura, feito de bombinhas de São João chamado “Homem-bomba”, riso este que vem, é certo, do atual contexto político, mas toda a graça reside em pegar no ar uma idéia e efetivá-la com clareza humorística. Provavelmente, a escala diminuta do boneco, sua ridícula pequenez, dá o tom cômico em relação à alta destrutividade dos verdadeiros terroristas. Aquele ajuntamento de bombinhas formando um homem de reduzido tamanho metaforiza toda a inocuidade das ações desesperadas e irracionais.

Suas duas melhores obras, porém, são outras: “Abrigo transparente” — uma espécie de geodésia feita com guarda-chuvas pretos unidos por 24 pregadores de roupa. Pela descrição parece obra feita de qualquer maneira. Não é. Há uma objetividade estética na peça, abrindo um caminho para a escultura irônica, ao mesmo tempo que lembra uma paródia dos abrigos do italiano Mario Merz. Só que seu casulo negro nada tem de metafísico, a partir dos vulgares panos que o artista utiliza tirados do objeto que serve para proteção contra a chuva. Fechados em sua estrutura, indicam uma proteção inútil. Outra idéia de inutilidade é o humor desferido contra a idéia construtiva metaforizada nas cansativas reuniões, nas quais se discute o destino de qualquer coisa. São 12 cadeiras de escritório, com os pés soldados, formando uma estrutura caótica, mas objetivamente organizada numa escala ascendente. Outro trabalho, “Geometria descritiva”, ajunta três livros sobre o assunto, de fato criando planos construtivos internos, resumo “teórico” às duas excelentes esculturas. Felipe Barbosa, se já não foi, deve estar na mira de colecionadores.

Uma maravilhosa surpresa é o trabalho de Chacal — duas pequenas dançarinas feitas de celofane que dançam sobre um disco, onde se escuta o obsessivo “Bolero”, de Ravel, e uma canção do poeta. Um refletor rebate as silhuetas das dançarinas que volteiam na parede. Obra delicada, sutil, emocionante. Usando elementos econômicos, o poeta extrai alta voltagem poética usando pouco material e pouca tecnologia, criando uma obra de atmosfera lírica. É uma das melhores em exposição. Há outras muitas boas, como as duas instalações de Denise Cathilina — uma teia fina de fios e visores dependurados por onde se vêem nós grossos de linha — e “Corpo minado”, de Helena Trindade — uma teia em forma de funil virado para baixo, sustentada por teclas de máquina de escrever. Também a ironia da linha desenhada por uma caneta presa na parede em “Riscos e penas”, de Suely Farhi, é obra estimulante. Outro bom artista, prejudicado, um pouco, pelo tamanho das peças e pelo espaço reduzido que lhe foi oferecido, é Jarbas Lopes, com suas pinturas-instalações chamadas “Política” — tiras de plástico entrelaçadas que deformam, de forma ótica, as figuras. Há também pinturas, como as delicadas feitas por Chang Chi Chai.

Chacal, o excelente Felipe Barbosa e Jarbas Lopes dão o tom elevado de pesquisa e poética à mostra, mas todo o conjunto é exemplar para exibir o que os jovens artistas andam fazendo hoje. Agora, uma perguntinha: será que é preciso ir ao Arsenale na Bienal de Veneza e percorrer 12 mil metros quadrados para compreender o que se passa no planeta? Como se dizia no tempo de d. João, “vá ao Paço”. Um pouco do mundo também está lá.

Segundo Caderno – O Globo /  Rio, 21 de Junho de 2003

 

 

Do tempo de brincar
Luciano Vinhosa, dez. 2010

 

Porque todo artefato industrial guarda em si invariantes geométricas desde sua constituição e natureza reprodutível, Felipe os elege como matéria prima e inspiração para seu trabalho. De fato, a geometria que está no gene do produto é intrínseca a todo processo construtivo que é também esse do artista. O seu olho esperto, investido de tão precisa poética, vagueia as recônditas dobras do mundo do consumo, as obscuras sarjetas das ruas onde se refugiam esses objetos desprezíveis  e desprezados – porque decartados desde o primeiro uso –, para descobrir ali as formas adormecidas que se insinuam em novas estruturas. Assim, Felipe dará a esses objetos uma chance a mais de reviverem na arte e, através dela, alcançar a mais promissora das instâncias da experiência humana: – a experiência estética, cujo dínamo é o jogo. Combinando em seu modo heterogêneo passividade e vontade formal, o instinto do jogo traduz-se na liberdade de brincar que caracteriza o traço mais humano do homem: – O homem só é verdadeiramente humano quando brinca, filosofou Schiller.

A passagem da unidade modular para o corpo estrutural é um jogo associativo inerente ao raciocínio orgânico que permeia toda a obra do artista. A linha orgânica – para dizer como Lygia Clark – é uma linha de flexão e ao mesmo tempo de inflexão pela qual o corpo não só é capaz de manter articuladas suas partes, como também de se lançar enquanto organismo movente, deveras um todo em evolução e transformação, no espaço físico. A compreensão desta lógica pelo artista lhe permite descobrir em cada objeto escolhido um princípio estrutural possibilitando desvelar diferentes configurações espaciais, distintas daquelas que lhe servem de partida: a estrutura do próprio objeto industrial. Os hexágonos que compõem a geodésica de uma esfera, no caso as bolas de futebol, se prestam tanto para estruturar superfícies bidimensionais como poliédricas, por exemplo. Os palitos de fósforos colados uns aos outros formam fitas que, quando unidas em suas extremidades, fecham seções de cones que, por sua vez agrupados, estruturam uma membrana esférica cujos poros deixam divisar seu interior vazio. O artista percebe esta mesma possibilidade nos resíduos de lápis apontados e os reaproveita para construir suas Morulitas.  É importante observar, no entanto, que as operações plástico/ estruturais empreendidas pelo artista, mesmo quando geram objetos volumétricos, acabam por restituir a superfície. Esta se mostra quase sempre realçada pelo uso de cores ready-mades, cintilantes e ácidas, as quais se projetam no ambiente, enfatizando sempre a instância exterior do objeto que nos dão a ver.

Em alguns de seus últimos trabalhos, sem abandonar o princípio estrutural que caracteriza tão bem seu procedimento, Felipe vem enfrentando os problemas mais francamente da pintura no que tange à fatura e ao uso da cor. Dos Condomínios para as telas em grandes formatos, chamadas por ele de Arquitetura Pintura, nota-se um enriquecimento continuado da paleta através do desenvolvimento de uma escala cromática variada, complexa e sutil graças ao emprego de tons subjetivos e mais finamente combinados. Impossível diante delas não chamarmos à memória as pinturas de Klee ou Volpi, não só pela riqueza e proximidade da paleta, mas por combinar cálculo e intuição no momento mesmo em que as faz. Aliás, um dos traços mais característico de sua obra é operar com agilidade o trânsito entre o legado da tradição e os procedimentos contemporâneos, tais como a apropriação ready-made, a colagem e a ressignificação do banal. Mais uma vez, fazer e pensar, passividade e ação, heterônimos combinados, próprio do regime estético da arte, são remarcáveis na obra de Felipe Barbosa.

Mas, afirmar isso de seus trabalhos é ainda dizer pouco, porque estaríamos nos contentando com uma espécie de inteligência frívola capaz de engendrar cálculos que não fariam mais que ofertar arranjos cromáticos variados, puramente decorativos. A obra de Felipe vai mais longe porque religa este saber erudito  com a particular atenção que entretém com os procedimentos próprios às práticas do homem comum – o bricolé, o faz tudo. Neste caso, o olho saturado de consciência artística pode facilmente se associar a uma mão inventiva que se adapta às circunstâncias adversas. Quero dizer que nesta relação o que está em jogo não é só uma lembrança formal das artes populares, mas sobretudo a inteligência processual do homem do mundo que incorpora no fazer a lógica da improvisação, tão estreitamente condicionada pelo entorno imediato. Como exemplo, lembro aqui de uma caixa d’água industrial cujo interior foi revestido por azulejos brancos que se adaptam como podem, mas de certa forma regularmente, à superfície curva de seu interior. De brincadeira, chamei esta obra de Piscina da garota da laje em referência àquela que tais meninas usam para refrescar o corpo enquanto disputam uma nesga de sol em tão exíguo terraço em que se bronzeiam.  De fato, é no àgil movimento entre pensar e agir, solidez e precariedade, fineza e rusticidade, cálculo e improvisação, abstração universal e comentário cultural bem humorado que sua poética se refina e equilibra. Com efeito, o que dela releva é um traço universal do homem, que o reitera como sujeito de sua história, sempre capaz jogar com as contingências, ao mesmo tempo em que amplia a esfera limitada do meio em que vive. Justamente no ponto em que seu trabalho se investe de significado social ora pontuado no lugar sem contudo se atrelar restritamente a uma cultura em particular, é que ele ganha também, ao meu ver, interesse artístico. Não fosse essa dimensão antropológica fluida, intrínseca ao fazer do artista, sua obra não teria o trânsito que se observa quando exibidas em outros contextos culturais.

Se na tragédia grega o que garantiu transitividade e permanência foram os traços universais das paixões humanas nelas abordadas, na obra de Felipe Barbosa é a aptidão universal do homem em se adaptar às condições adversas que as garante.

 

Felipe Barbosa
Moacir do Anjos

 

Ao longo de poucos anos, Felipe Barbosa criou um grupo de trabalhos que atestam uma singular vontade construtiva. Evitando o emprego de elementos em estado bruto (prontos, portanto, para moldar-se plenamente ao gesto e ao invento do artista), prefere tomar, como matéria de suas construções, conjuntos de objetos que já tenham uma finalidade ordinária e definida: em vez de plástico, alumínio, tecido, ferro ou madeira, é da reunião de esquadros, copos descartáveis, guarda-chuvas, pregos ou palitos de fósforo que faz os seus trabalhos. Se tal procedimento limita a variedade das construções por ele criadas, permite que investigue os atributos formais que, a despeito de suas marcadas diferenças de uso, os objetos apropriados partilham.

A operação construtiva é quase sempre a mesma: um número variável de objetos idênticos é unido (com cola, fita adesiva, solda, prendedores de roupa ou outros meios quaisquer de adição) de modo a formar um volume em torno de um núcleo virtual e que exerce sobre eles uma força centrípeta. Guarda-chuvas abertos são, assim, presos uns aos outros por suas bordas com os cabos voltados todos para dentro, criando um abrigo em que não se entra; centenas de palitos de fósforo, por sua vez, são juntados lado a lado, constituindo uma esfera cuja superfície é toda feita de cabeças de pólvora expostas ao risco da combustão violenta; esquadros plásticos, entre vários outros possíveis exemplos, são colados por suas arestas de extensão idêntica, formando um icosaedro transparente. Compreensível mesmo pelo olhar distraído, esse método demonstra como as coisas que possuem uma função definida no mundo podem, quando agrupadas de uma dada maneira, constituir objetos inteiramente distintos. E embora as características dessas composições estejam já implicadas nas propriedades formais das unidades usadas, sua construção destitui daquelas coisas sua utilidade conhecida, fazendo-as devedoras, apenas, do poder de invenção do artista.

Em trabalhos recentes, Felipe Barbosa altera alguns dos procedimentos que adota na criação de suas peças, ainda que mantenha a relação ambígua entre a unidade e o conjunto dos elementos seriados de que se apropia. Em vez de tomar objetos que têm serventia mesmo quando isolados de outros iguais (um prego basta para fixar algo, com um copo apenas se bebe água), serve-se de ladrilhos hexagonais de cerâmica, os quais só desempenham a sua função de modo pleno –­ revestir os pisos de cimento em que se assentam os cômodos das casas – se utilizados em conjunto. Retira-os, portanto, de uma situação já esperada de contigüidade planar apenas para pô-los em uma outra situação de proximidade, em que os ladrilhos cobrem não mais o chão, mas alguns dos lados de um volume feito também de cimento. A relação estreita dos objetos criados com uma situação anterior de agrupamento é reforçada pela forma usual em que o artista os apresenta: fotografias em que os volumes construídos são vistos sobre pisos revestidos de ladrilhos idênticos àqueles que os cobrem parcialmente.

Já em outros trabalhos feitos quase ao mesmo tempo, há uma mudança adicional que marca uma inflexão nos procedimentos construtivos que Felipe Barbosa usa e, talvez até, nos interesses que os orienta. Apropriando-se de dezenas de bolas feitas para jogar futebol, o artista as esvazia de ar e descose, em alguns poucos pontos, os gomos hexagonais de couro que as compõem, de modo a transformar o volume originalmente esférico numa superfície plana. Costurando as bolas assim abertas umas nas outras, tece extensas estruturas que são, posteriormente, esticadas sobre paredes, exibindo os elementos cromáticos e gráficos que a junção aleatória dos gomos produz. Assim como os ladrilhos de cerâmica que compõem os volumes já mencionados são produzidos com o objetivo de serem usadas em série para cobrir pisos, também os gomos de couro que integram esses trabalhos foram feitos para ser partes constitutivas das bolas, não havendo emprego útil para uns ou para os outros se considerados isoladamente. Diferentemente, entretanto, dos ladrilhos e de tantos outros objetos que Felipe Barbosa retira da vida comum para fazer seus trabalhos, os gomos não estão disponíveis, na sua forma unitária, para um emprego simbólico distinto, mas somente como partes constitutivas de objetos (as bolas) já integrados ao inventário das coisas conhecidas do mundo. Ao invés de reunirem elementos seriados com a intenção de inventar objetos não catalogados ainda, esses trabalhos são, portanto, a conseqüência do desmanche voluntário e do posterior reagrupamento, sobre o plano, de objetos tridimensionais já existentes. Eles são também, por isso e por fim, índices de como a obra do artista se desenvolve no poroso e largo espaço em que o campo da construção escultórica e o campo da pintura se tocam e se confundem.

Os trabalhos de Felipe Barbosa desenham a seguinte lógica: criar um sistema a partir de seus “acidentes” ou resíduos internos. Na prática, acua-se o que há de solene e ansioso na visualidade, condicionando a existência dos objetos à irônica assimilação de suas redundâncias. Felipe leva a autonomia do objeto a uma encruzilhada, extraindo dele os seus elementos funcionais e reinserindo-os nas coisas de maneira que o que era lógico soa, senão absurdo, cômico. É assim com a mesa de bilhar, apoiada no transbordamento de suas bolas, (fazendo-nos inclusive imaginar a conclusão de uma partida estapafúrdia); na mesa de pingue-pongue, com sua cartografia da travessia da bola de um lado ao outro, oferecendo-nos – é impossível resistir à tentação do jogo de palavras – uma “nova perspectiva”, com suas bolinhas ocupando aquele campo qual as figuras que afundavam ou sobressaíam na superfície da tela. Com o trem que nunca sai do túnel, é só espera; nas imagens de cortiças que mais do que dublarem o real (na medida em que as fotos passam a ocupar o lugar do painel) não renunciam sequer a parodiar sua pictorialidade geométrica, fruto das manchas e desbotamentos.

 Dos condomínios de casas de passarinhos – aqui também cada vez mais sofisticados com sua execução “industrial” – aos bichos de pelúcia “explosivos”, às bolas de futebol planificadas e agigantadas, passando pela caixa d’água caprichosamente revestida, ao backlight (cuja luz posterior não só revela o que escapa ao olho nu, mas também monta uma espécie de árvore familiar das figuras que ilustram as cédulas) o dispositivo da apropriação por um lado reitera o choque da estranheza inventado pela modernidade; por outro aponta o impraticável como uma qualidade colateral em um mundo no qual tudo existe em razão de uma finalidade.

 O espaço-fissura se revela até em suas pinturas nascidas da junção de uma obra anterior (Condomínio Volpi, 2008) com o interesse pela obra de Alfredo Volpi. Talvez por ter reconhecido nela algo que lhe é afim, uma estrutura construtiva do espaço que não apenas se mescla culturalmente (visualidade popular e erudita intercaladas), mas também plasticamente, ao conseguir, justamente pelas brechas, quebrar a ordem do espaço pictórico, problema-chave da pintura moderna. No caso de Felipe, entretanto, não se pretende a repetição de algo conquistado no século XX, sequer de sua paródia, mas de perceber tipos de raciocínio acerca do real capazes de tirar o cisco do olhar... fazendo-lhe estratégicas e provocativas cócegas. E, quem sabe, recolocando-o.

Guilherme Bueno