Nosso corpo feminino

Fernanda Pequeno, 2019

Na individual Nosso corpo feminino, Gabriela Noujaim apresenta a sua pesquisa gráfica, conceitual e imagética desenvolvida ao longo dos últimos anos. A artista, que possui formação em gravura, desde 2016 vem se voltando para questões concernentes às relações entre corpo, política, feminismos e artes visuais. As mesmas são abordadas a partir de experiências pessoais, em consonância com acontecimentos políticos do Brasil recente.

Desse modo, Noujaim vem se engajando em propostas de contradiscursos críticos e na formulação de contranarrativas que discutem problemas como ancestralidade, estupro, feminicídio, machismo, misoginia e tortura, aludindo certa tradição artística e de mulheres no e do Brasil. Suas referências vão desde a sua própria mãe, Maria Aparecida Domingues dos Santos, passando pela ex-presidenta Dilma Rousseff, pela vereadora Marielle Franco, pelas artistas Anna Bella Geiger, Evany Cardoso e Lygia Pape, chegando às heranças indígenas que foi buscar na Aldeia Maracanã[1], no Rio de Janeiro, cidade na qual nasceu, vive e trabalha.

A historiadora da arte Griselda Pollock, em seu texto “Intervenções feministas nas histórias da arte” [2], trava importantes discussões a respeito da presença e dos modos de representação das mulheres nas histórias da arte. Pollock discute os fatores complexos e as práticas ideológicas, econômicas e sociais envolvidas na inserção, presença e representação de mulheres no mundo da arte, sublinhando como a diferença sexual é construída socialmente.

Na exposição estão presentes serigrafias de diferentes séries como, por exemplo, Uratau Domingues, na qual a artista se apropria de um nome indígena, agregando-o a um de seus sobrenomes. Composta de três imagens nas quais desaparece em meio às arvores da Aldeia Maracanã, a série dialoga com Camouflage, trabalho de Anna Bella Geiger de 1980 no qual a artista é fotografada de costas com uma roupa camuflada e um tamanduá enrolado a seu pescoço, tendo ao fundo várias árvores.

Outra serigrafia presente é o díptico Ouroboros que referencia a cobra mítica que come o próprio rabo. Nas imagens, a mão da artista aparece com grafismos pintados com tinta natural, sugerindo o rastejar de uma serpente. Além do animismo e da síntese indígenas, Noujaim parece também referenciar Lygia Pape que, em entrevista à jornalista Angélica de Moraes, enunciou o seguinte: “eu acho que nós brasileiros somos é fundamentalmente construtivos. (...) É uma coisa que está entranhada”[3]. A artista referia-se à geometria presente nas pinturas corporais indígenas e aos grafismos geométricos presentes em portas populares e carrinhos de pipoca, para além da influência das vanguardas artísticas ocidentais que teriam incutido no Brasil a busca por um vocabulário geométrico universal. Para Pape, nada seria mais sofisticado do que a cultura indígena, tradição que Gabriela Noujaim referência em seus trabalhos.

Domingues, outra obra que integra a mostra, é um retrato clicado por Rodrigo Braga, no qual a artista está coberta com grafismos corporais bebendo leite numa cuia. Também presentes na exibição estão os livros: Mater, que contém imagens em serigrafia da vereadora Marielle Franco, assassinada a tiros no Rio de Janeiro no primeiro semestre de 2018; e Presente 2016, que reconta de forma sensível alguns momentos marcantes do ano do impeachment de Dilma Rousseff, juntamente com uma carta inédita que denuncia a violação dos direitos humanos e dos direitos das mulheres entregue a chanceler Angela Merkel por pesquisadores brasileiros que então residiam na Alemanha.

Por fim, consta da exibição o registro da performance Cy, que em tupi-guarani significa mãe. Na ação, dois corpos femininos se entrelaçam, restaurando uma unidade perdida entre a artista e sua mãe, da qual foi separada ainda na infância. Sobre os corpos, é projetada a imagem da garrafa de Klein, uma superfície fechada sem margens e não orientável, na qual não é possível distinguir interior e exterior.

Griselda Pollock, no texto referido alguns parágrafos acima, enuncia que as práticas culturais têm grande impacto “na produção de significados e, o que é mais importante, na produção de sujeitos sociais”[4]. A autora evidencia, então, a arte como parte importante na criação do discurso que em geral define a mulher a partir do masculino ou, como propôs Simone de Beauvoir, como “segundo sexo”.

Os procedimentos de Noujaim, assim, são críticos, mas também são de profundo respeito pela sua memória e a de suas ancestrais. Nosso corpo feminino constitui-se de histórias pessoais e coletivas, mesclando temporalidades, heranças, referências e traumas vividos na carne. A exibição traz corpos femininos, nus ou não, da artista e de outras mulheres, e atualiza o lema feminista “o pessoal é político”, entoado por militantes durante a segunda onda do feminismo, assim como o recente “Nem uma a menos”.

As marcas das violências físicas e morais, privadas e sociais sofridas diariamente ficam em nosso(s) corpo(s) feminino(s). Mais do que objetos, esses se tornam, então, território de luta e de resistência. Ao ecoar essas palavras de ordem no título e na exibição, assim, Gabriela Noujaim endossa o coro que vem atualizando a tradução da palavra ubuntu[5]: Eu sou porque nós somos, contribuindo, desse modo, para a sororidade, a irmandade entre as mulheres.

_____________________

 

[1] A Aldeia Maracanã é um espaço de resistência indígena localizado no terreno que pertencia ao antigo Museu do Índio, ao lado do estádio do Maracanã, que vem sendo palco de disputas econômicas, judiciais, políticas e simbólicas.

[2] POLLOCK, Griselda. “Intervenciones feministas en las historias del arte. Una introducción”. In Visión y Diferencia. Buenos Aires: Fiordo, 2015. P. 33.

[3] Lygia Pape em depoimento a DE MORAES, Angélica. “Um manto tupinambá reflete a devoração do índio”. In O Estado de São Paulo. São Paulo, 30 de abril de 2000. Caderno 2/ Cultura, s/p.

[4] Pollock, idem, p. 31.

[5] Ubuntu é uma palavra das línguas zulu e xhosa, faladas na África do Sul, que significa: “Eu sou porque nós somos” ou “Eu só existo porque nós existimos”. O vocábulo exprime um modo de vida coletivo, pautado pelo altruísmo pela colaboração entre os seres humanos, que se opõe ao narcisismo e ao individualismo prementes nas sociedades contemporâneas.

O que o mar uniu, Brasil e Portugal'


Pés enterrados na areia, os dedos brincando com os grossos grãos junto à rebentação, olhos firmes no horizonte… Gabriela traça paralelos e demarca novas latitudes para a sua produção durante a investigação em residência. 
Em Portugal, Gabriela confrontou e reconheceu que há muito mais que mar e lágrimas salgadas unindo nossas costas e portos. Suas reflexões poéticas começam, inexoravelmente, pela língua - perene, imparcial e dominadora -, para invadirem campos mais amplos que transpõe conceitos de territorialidade e cultura. 
Gabriela viajou em linha recta, tal como o seu olhar mira o horizonte, transpondo o oceano que nos separa e une, para descobrir que tal como no Brasil, em Portugal, seguir o caminho mais sinuoso é, demasiadas vezes, o que de melhor podemos fazer. A surpresa, a surpresa e a poesia. A surpresa da paisagem, da língua, do imergir absoluto nas terras, do mais negro céu, do reconhecimento emocional que libera o intelecto, da felicidade em abrir um novo plano na paisagem… A poesia de um amor indelével e do mar, fluído pesado que nos une, constante, sereno e vigoroso.
Generosa, Gabriela partilha connosco esta viagem, processo de entrega a uma investigação e reflexão emotiva e pessoal. Processo revelado por suas fotografias e vídeo; as obras como relato, diário de bordo da presença da artista em Portugal; que reflecte essa evolução e todas as suas fases. A exposição catalisa esse sentimento ao inserir as obras em ambientes distintos, tentando valorizar o caracter contemplativo de cada uma peças. 
A viagem, evocada no tríptico - impressão sobre papel – remete-nos à distância implícita ao oceano e ao céu que nos separa, o esforço físico e mental da viagem (qualquer migração, mesmo que temporária, impõe desafios) e ao peso de nossa identidade. 
‘São Terras de Portugal’, o painel-performance em que a artista se deixa ‘engolir’ pelo solo luso, contempla e retrata, de forma avassaladora, a abnegação com que se entregou à análise si mesma e da sua relação com dogmas e história. Não deixa de ser relevante que esta obra - impressão sobre alumínio – tenha um caracter ambíguo, transmitindo uma poderosa e serena claustrofobia que nos deixa desamparados perante a superfície da obra, espelho para a nossa própria alma. Gabriela, segura em nossa mão e sussurra aos nossos ouvidos ‘confia em mim, fecha os olhos e cai, mergulha comigo’… A estranha luminosidade que emana da obra garante o conforto da segurança.
‘Amar’ declama a vontade da artista. O sucesso em sua busca. ‘Amar’ (vídeo), é a declaração de uma revelação, é sentar naquela mesma areia, transportada pelas ondas para o outro lado do oceano, e saber, com olhos fixos no horizonte, que estamos em casa. O bucólico rumor do rio encontrando o mar, águas de corrente forte e também aluvião que encontra e alimenta outras, mais plácidas. A maré traz os despojos do passado e os desejos do futuro.
Gabriela é uma artista inquieta, explorando o seu ideário e vocabulário para transmitir mensagens pungentes sobre a condição humana. Sua linguagem tem a sofisticação e contemporaneidade que a nossa condição demanda. Carregadas de metáforas, as suas imagens e vídeo relembram-nos que a pele pode ser frágil, mas o espírito é forte… E é exactamente isso que este nosso mar une.
Nuno Ribeiro

'O que o mar uniu, Brasil e Portugal' 
Gabriela Noujaim
Curadoria e Produção: Nuno Ribeiro, Belkiss Oliveira
Apoio à produção: Telmo Silva, Pedro Ribeiro, ISPGaia

07 – 30 de Agosto 2015

Armazém
Rua Miragaia 93 – Porto, Portugal


Bye Bye Brasil, topologia do afeto


 “Para Vigo me voy.”Com esta frase, Lorde Cigano – mestre dos sonhos – faz nevar no Nordeste brasileiro.

Algumas formas de arte estão carregadas de magia. Aquela do tipo presente não somente nos truques de mágica, mas também a que está impregnada na literatura, na música, no cinema, nas apresentações dos artistas de rua, bem como nas artes visuais. Há variadas expressões artísticas, com muitas vertentes. Algumas apresentam mundos paralelos, imaginados pelos artistas, fruto da maneira como digerem o que absorvem. São realidades inventadas, materializadas e entregues de volta ao mundo dos mortais. Na exposição “Bye, Bye, Brasil, topologia do afeto”, as obras da artista visual Gabriela Noujaim compõem um universo devaneante que tem como base o que a cerca e, todavia, vai além do real.


Lorde Cigano, o ilusionista do filme Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, executa o feito com a neve dentro da lona da “Caravana Rolidei”, com a qual percorre as cidades brasileiras à procura de um público que ainda se encante com o circo. O retirante nordestino Arcanjo, morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, apaixona-se pelo circo e pela bailarina que faz acrobacias aéreas com tecido, enquanto sonha ir ao desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, na Marquês de Sapucaí, palco de desfiles carnavalescos na cidade do Rio de Janeiro. Isto tudo, enquanto o grupo “Tá na Rua”, também no Rio, apresenta o seu teatro carnavalizado em praça pública, aos pés dos Arcos da Lapa, tradicional local de boêmia, de samba e onde está instalado o Circo Voador, espaço de shows. Arcanjo e Lorde Cigano não estão na mesma obra de ficção, nem o “Tá na Rua”. Estes – e outros elementos – são protagonistas que se relacionam, se misturam e se entrecortam na exposição de Gabriela Noujaim.

Arcanjo é personagem de um livro inacabado há vinte anos, de autoria de Jorge Gabriel Noujaim – não por acaso, pai de Gabriela. “É como se fosse um irmão meu”, diz a artista visual sobre a obra literária. É o afeto que interliga as variadas expressões ficcionais presentes visualmente na exposição. “Se a arte não servir para nada, serve para nos tornarmos pessoas melhores”, reitera a artista. É a arte, que, como diz Arcanjo, dá “sentido de mundo e de gente”. E foi para dar conta destas histórias e das suas, do circo, de mágicos, de sonhos e de retirantes que, em sua busca, Gabriela saiu do Rio de Janeiro, onde nasceu e mora, para fazer uma residência artística no Nordeste brasileiro, percorrendo Paraíba, Pernambuco e a região do sertão do Cariri cearense, e voltou para apresentar a sua costura. Sem nenhuma ponta solta neste bordado, estamos diante de uma topologia de rede onde todos os pontos estão conectados, início e fim interligados, como em uma fita de Möbius.

Assim, podemos ver, nas obras da exposição, a acima citada fita (Serpentina; série Bye, Bye, Brasil), bem como as linhas, visíveis (Siamesas; Serpentina; Noel Rosa; Fiando Céu) e invisíveis, que unem imagens representativas dos diferentes aspectos abordados: a literatura, a música (Noel Rosa; Serpentina), o circo (Confete; série Bye, Bye, Brasil), o sertão (Ponto Final ou Início; Siamesas; Sertão, Terra) e o carnaval (Ponto Final; Serpentina; Confete). E não é sem motivo que nomes de trabalhos estão repetidos nas referências entre parênteses, pois está tudo junto e misturado. Essa mistura resulta na construção de um imaginário, onde são estabelecidas correspondências entre os distintos domínios das expressões artísticas, onde a união se dá pela identificação entre sujeitos diferentes que estão carregados de características em comum, um entrelaçamento de identidades: da artista e das personagens.

Há, também, uma outra construção de imaginário – a identidade nacional –, que se dá na afinidade das narrativas presentes nas obras com a cultura e a história brasileiras, tangenciando os estereótipos (samba, carnaval, religiosidade, musicalidade, mambembe), dentre eles a pobreza endêmica do país, desvelada na utilização explícita do dinheiro como material pictórico. Isto está presente em Vai Chover Dinheiro no Sertão, onde confetes feitos de notas de dinheiro são acrescentados à neve da imagem original do frame extraído do filme de Diegues; e na série Bye, Bye, Brasil, onde há, colada em uma das telas, uma moeda de Real brasileiro. Intervenções sutis, mas que servem para pontuar esta leitura.

Além da utilização de objetos tridimensionais – linha de costura, agulhas, confete, notas de dinheiro, moeda –, muitos dos trabalhos desta exposição apresentam técnicas que são experimentações recentes na produção de Gabriela. Habitualmente, ela utiliza a serigrafia, bem como o vídeo, também presente na exposição. Em “Bye, Bye, Brasil, topologia do afeto”, são apresentadas fotografias impressas (serigráfica ou fotograficamente) sobre tela, que recebem acréscimo de pintura feita à mão pela artista. A sobreposição de técnicas e o transbordamento de ideias de um meio para outro acentuam as outras misturas já mencionadas acima no texto, reforçando visualmente os conceitos apresentados por Gabriela.

O ápice apoteótico desta exposição é a transmutação de Gabriela Noujaim em artista circense, incorporando o Lorde Cigano que habita nela e apresentando-se pelas ruas do Rio de Janeiro, em diversas performances, junto a outros artistas habituados a exibirem-se ao ar livre.

Está tudo amalgamado – personas, personagens, máscaras, fantasias – em uma topologia do afeto.

André Sheik, fevereiro de 2015.

Fiandeiras 

Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam (Clarice Lispector)No difícil jogo de articular arte contemporânea e obras clássicas da pintura, a jovem artista Gabriela Noujaim conseguiu se posicionar. Com o vídeo “Fiandeiras”, a partir do quadro As Fiandeiras, do espanhol Diego Velásquez (1599-1660), a artista simula uma cena ficcional instalada no salão nobre do Parque Lage.  O espaço, perfeito para realização do vídeo, oferece iluminação e dimensões necessárias para que a artista desenvolva sua criação.  Uma roca de fiar, uma tela ao fundo onde são feitas projeções, valsas tocando – eis os elementos que Gabriela usou para contracenar com seus personagens: um casal dançando, um homem fiando e um anjo. 
Para a execução da obra As Fiandeiras, Velásquez dividiu o espaço cênico em diferentes planos e usou principalmente a luz para destacar os diversos elementos pictóricos. Se no primeiro plano o pintor posicionou o ateliê e as artesãs fiando a lã, é no plano superior da tela que se encontra o verdadeiro motivo da obra: uma imensa tapeçaria da fábrica espanhola Santa Izabel.  Nela está representada a cena mitológica de Aracne e Athenas.  Na tapeçaria, a deusa Athenas está pronta para castigar o orgulho de Aracne transformando-a em aranha, destinada a fiar para sempre.  
Fiar a lã ou o algodão na roca era uma atividade destinada quase que exclusivamente às mulheres. Enquanto fiavam, desfiavam histórias, tecendo como as moiras gregas Cloto, Laquesis e Átropos que enrolavam, amarravam e cortavam o fio da vida, sorteando assim o destino dos seres humanos.
Gabriela, no vídeo, coloca também em primeiro plano a roca. Mas comete uma subversão: o artesão agora é um homem que vai se despindo aos poucos até mesmo perder a visão.  Como Aracne, está destinado a fiar eternamente.  A luz incide sobre ele deixando que os bailarinos ocupem a cena posterior.  Usando um vestido vermelho a mulher dança valsas sem cessar, rodopiando pelo salão com seu par, indiferente ao que se passa com o homem que fia. Eles também parecem destinados a permanecer assim indefinidamente. Uma enorme saia vermelha usa também a mulher que carda a lã no quadro de Velásquez.
É bastante significativo o trabalho de interpretação da artista que subtrai elementos narrativos do quadro e traça sua própria leitura. Numa imersão, Gabriela destaca os vários símbolos e mergulha no sonho, criando seu cenário.  Velásquez está presente, mas o que nos é apresentado em vídeo tem cores e luzes contemporâneas.  Os anjos renascentistas que apontam para Aracne na tapeçaria, aparecem na concepção de Gabriela como um único anjo bailarino, que perpassa a cena.  A música envolve como envolvem as cores e os movimentos.  A linguagem visual da artista foge daquela usada pelo homem do século XVII, mas o fio que as une permeia as imagens.  Onde há força transparece a delicadeza, quando o inusitado surpreende, o clássico prevalece.
O que, acima de tudo, nos encanta na obra de Gabriela Noujaim é comprovar o poder da experiência contemporânea que nos faz revisitar séculos de belas artes, que nos aproxima dos mestres e nos mostra novos caminhos para a fruição.

Isabel Sanson Portella
Doutora em História e crítica de Arte
Curadora da Galeria do Lago/Museu da República

Máquina do tempo 

Reprodução, citação, apropriação – muitas seriam as palavras possíveis para o universo poético de Gabriela Noujaim. Outro termo, trabalhado pelo historiador da arte Hal Foster, parece mais adequado: recodificação. O ato da “reprodutibilidade técnica” surge em seus trabalhos não apenas como um meio de fazer lembrar as tradições da história da arte e da cultura, mas com a potência de se criar uma nova narrativa a partir de imagens icônicas.

Uma câmera anônima captura o movimento da natureza sobre o ar. Qual a finalidade primeira desse registro? Lembranças de uma viagem? Um estudo de zoologia? Um álbum privado de memórias transformado em um canal público de vídeos na world wide web? Em “Céu e mar”, um aquário transforma este registro num panorama da paisagem. Se a fotografia já foi chamada de câmara escura, é uma “câmara transparente” o suporte da videoinstalação. Esta violenta revoada de pássaros ecoa a perspicácia matemática de Escher. O econômico volume d’água dentro do recipiente se transforma em um lago que reflete e distorce a ação. Este parece ser um verbo crucial na produção da artista: “distorcer”, usar imagens e proporcionar interpretações futuras que estão além da literalidade.

Em “O ovo da serpente”, o cinema é desprovido de seu movimento e frames são projetados no espaço expositivo. A potência da horizontalidade é perpetuada, mas estes rostos decupados por Bergman recebem uma camada mais fantasmática do que a originária. O ovo pode ser da serpente, mas é uma fita de Moebius que está à frente de sua ampliação. Para além de uma figura geométrica, esta imagem faz lembrar da vinda de Max Bill ao Brasil e de sua importância para a reverberação da arte concreta (e neoconcreta futuramente). Menos palpável que a história da arte, a mitologia antiga e o símbolo do ouroboros: o eterno retorno, início e fim conectados. 

Pensando junto às obras de Gabriela Noujaim, a imagem da serpente que morde o próprio rabo e a necessidade de se olhar para trás para se produzir a arte de hoje. Passado, presente e futuro são problematizados dentro de uma pesquisa artística que tem a gravura, a fotografia e o vídeo, ou seja, a imagem técnica, como máquina do tempo.

Raphael Fonseca