ESPÓLIOS/ Nani Rubin (2016)

Foi numa viagem a Toledo, na Espanha, que o curador e professor Marcelo Campos se deparou com um pintura de El Greco (1541-1614) na catedral da cidade. “O espólio” (1579) mostra Cristo com um túnica vermelha pouco antes da crucificação.

A pintura me fez pensar sobre a ideia da propriedade, o que deixamos de verdade — diz Campos. — Esse momento da túnica é aquele em que ele vai ser espoliado, algo será roubado dele.

A ideia, ampliada para abrigar noções como memória e herança, é o ponto de partida da coletiva “Espólios”, que será inaugurada nesta quarta-feira na Casa França-Brasil, onde Campos é curador. Ele e os curadores assistentes João Paulo Quintella, Laura Cosendey e Poliana Quintella reuniram oito artistas cujo trabalho se insere em ramificações do conceito inicial. José Rufino e Brígida Baltar, por exemplo, apresentam obras que tratam da noção do corpo (a primeira propriedade) e do sudário. Rufino, através de monotipias produzidas a partir de documentos encontrados na fazenda de cana de açúcar de seu avô, na Paraíba; Brígida, com os lenços nos quais bordou autorretratos exagerando os efeitos do tratamento a que se submeteu para tratar uma leucemia.

Mais diretamente ligado à ideia de espólio é o trabalho de Thales Leite. Fotógrafo, ele era chamado por parentes de pessoas mortas para documentar os objetos deixados, com o objetivo de avaliá-los e vendê-los depois.

— Nessas fotografias você vê como o valor na arte contemporânea é flutuante — diz Campos. — Uma família que não tem ideia do que cada coisa vale empacota tudo, de um casaco de pele a um lustre, um bibelô.

Um outro desdobramento, a noção de acervo, está presente na obra de Renato Bezerra de Mello. Em “Inventário do esquecimento”, o artista trabalha com grafite sobre fichas de prostitutas francesas, catalogadas entre os anos de 1929 e 1960, que encontrou numa caçamba de lixo em Paris.

— Ele cria uma instalação, anulando os nomes e as informações. Trata-se de um espólio indesejado, que a sociedade rejeita — comenta o curador.

“Desvi(i)inho”, miniatura de instalação de Cildo Meireles, na obra “A minha coleção”, de Claudia Hersz

Há ainda o gaúcho Rafael Pagatini, com espécies de fotogravuras originadas de material garimpado no arquivo do Dops do Espírito Santos: fotos e descrições contidas no verso podem ser combinadas de diversas formas, evidenciando a arbitrariedade dos agentes da política e a aleatoriedade das informações. Já a dupla formada por Louise Ganz e Inês Linke desenvolve um trabalho baseado na ideia de propriedade, mas de modo mais político, tratando da posse da terra e dos bens públicos.

Há ainda um trabalho concebido especialmente para o Cofre da CFB: Claudia Hersz vai expor ali “A minha coleção”, composta por réplicas em miniatura de obras emblemáticas, aludindo a questões de desejo e aos acervos de arte contemporânea.

Nani Rubin é jornalista
Jornal O Globo


SOBRE A SÉRIE APREÇO/ Marcelo Campos (2016)


Thales Leite acompanha o processo de leilão de espólios, da catalogação e valoração à venda. Os objetos que acumulamos ao longo da vida são carregados de memórias, afetos e marcas de propriedade. O laço de posse cessa junto com a vida, e esses objetos antes confortáveis em um armário ou estante perdem subitamente, seu lugar e seu sentido. 

Com composições complexas e intensidade cromática, o artista cristaliza, já sem emprego e pertinência, dotados, porém de karmas, cargas e lembranças.

Marcelo Campos é Curadoe da Casa França Brasil
Casa França Brasil


EXPOSIÇÃO ÁREA 91/ Marisa Flórido Cesar

Enquadrar, recortar, suspender o acontecimento no ato: a fotografia é essa súbita paralisia; o sequestro do tempo-espaço na intermitência paradoxal do “ainda não”/ “não mais”; a interrupção dos nexos ordinários entre imagem e palavra. Filmar é isso e ainda religar os fragmentos erráticos na sucessão de imagens, costurar os elementos heterogêneos, os tempos e ritmos diversos, os espaços e os corpos que os ocupam, as imagens e as palavras que as enunciam, as sonoridades de diferentes fontes, das batidas frenéticas e às pausas serenas. Golpe e sutura, corte e montagem: o olhar da câmera separa e junta o que parecia díspar e disperso.

Quando Thales Leite deparou-se com as festas de aparelhagem na periferia de Belém, seu olho viajante e estrangeiro surpreendeu-se com aquelas enormes estruturas metálicas, semelhantes a espaçonaves saídas de antigos filmes de ficção científica. Pousadas quietas e sonolentas nos galpões, pareciam vindas de um futuro já suspenso ou de um passado sem porvir. Despertas durante a festa, erguiam-se em meio à multidão como um xamã ou um deus em presença, convocando todos a um transe coletivo, em meio à profusão de luzes, à fumaça que subia e envolvia os corpos. Corpos afetados pela fusão de ritmos, da música eletrônica aos gêneros locais, do carimbó ao lundu. Corpos transpassados pela aceleração dos fluxos, pela perturbação sensória de luzes e sons, pela excitação das batidas e pelo delírio hipnótico. 

Todavia sua associação com o cinema ultrapassa o repertório visual das ficções científicas: as festas de aparelhagem e o tecnobrega lançam mão de procedimentos próximos da montagem e da edição, típicos do cinema, em que rupturas e suturas são geradoras tanto de choques como de novas articulações entre formas e percepções, entre imagens e sons, entre tecnologias e sensibilidades. Uma arte de interrupções e rearranjos de tempos e elementos em ordens heteróclitas, mas que se recusa a se abster da fecundidade e das promessas de sua desordem. Tampouco ficção é a criação de um mundo ilusório se contrapondo ao real: são formas inauditas e ousadas de conexão entre um mundo referencial e os outros mundos que o atravessam ou orbitam à sua volta. Por isso naves espaciais podem invadir o paraíso intocado ou o inferno verde. A própria iconografia amazonense emerge do cruzamento e confronto de visões e imaginários sobre e da Amazônia, do indígena ao cristão, entre estereótipos perpetuados e singularidades reivindicadas. 

Como um artista, um viajante, Thales filtra esse universo por seus olhos mecânicos, por suas lentes de vidro. Cria sua própria ficção entre golpes e suturas, entre cortes e montagens. Optou por “capturar” as naves alienígenas pela fotografia, e o fez acentuando sua estranheza e gigantismo ao excluir a figura humana ou ao seccioná-las como um cirurgião em uma aula de anatomia. Águias de fogo, Diamantes, Príncipe negros compõem também um assombroso bestiário tecnológico ali adormecido ou dissecado.

Por outro lado, pela lente do cineasta, escolheu o olho como personagem dessa trama, com suas caçadas e capturas, com suas invasões e flagrantes, com seus jogos especulares. No filme, “inverte-se o jogo” como diz: ele é o outsider, o caçador flagrado em sua caçada. Do meio da multidão distraída, olhares vão despertando do torpor e descobrindo, entre desconfiança e curiosidade, o olho de vidro e o estranho por detrás que os olha. No mais, é embarcar nas tramas desses olhares e nas fugas dessa viagem.

Marisa Flórido Cesar é Curadora e Crítica de Arte
Área 91 (Ed. F10, 2016)

 
O RUIDOSO PODER DA FOTOGRAFIA/ Rodrigo Braga (2016)
 
Fotografia é farsa. Porém há quem acredite. Há quem credite a ela o real diante dos olhos. No entanto, quando se trata do olho de vidro, este tem seus limites, age sempre recortando espaços, tempos e luzes. Existe sempre uma inevitável fragmentação do todo, como uma pinça cirúrgica que seleciona uma parte do corpo: escolhas do fotógrafo mediadas pela bitola da câmera. Mas é nessa inusitada combinação entre interpretação sensível humana e possibilidades técnicas pré-definidas que acontece a construção da imagem. É justamente no princípio mais simples da fotografia - recorte de tempo e espaço - que reside sua faceta mais encantadora: subverter o esperado, gerando especulações em torno da imagem.

Assim sendo, todo fotógrafo é como um piloto de uma nave chamada tempo, que tem a missão de nos levar mais longe. E assim sempre foi ao longo da história da fotografia. Uma paisagem, uma praça ou um monumento em um cartão-postal nos faz “visitar” um mundo desconhecido. De certa forma, ao finalmente viajarmos de fato a uma determinada cidade ou região famosa, sentimos familiaridade com o lugar (1), ainda que a sensação se contraponha ao que esperávamos. Nada mais normal. Trata-se da ficção dentro da “realidade” captada pelo obturador, na qual cabe sempre o embelezamento, a distorção, o agigantamento, etc.

Então, o que nos vem à mente quando pensamos em Belém do Pará?

Ao tomar sua “nave-de-ir-mais-longe”, Thales Leite pousa em uma cidade rica em significados culturais, sentidos palpitantes, imaginário fértil e - por quê não? - estereótipos. Contudo, a Belém, nosso viajante não foi em busca do cartão- postal, mas sim de outro mundo dentro do mundo supostamente conhecido: as festas de aparelhagem. Parece ficção científica, mas é pura efusão de sonora tecnologia em meio ao que esperaríamos calmaria idílica. Quem diria nosso viajante encontrar outras naves? Desta vez físicas, diante de sua retina e dos seus companheiros olhos de vidro, ambos, ali, prontos à subversão que é fotografar, pois que Thales muito bem sabe as artimanhas desse ato. São máquinas estrepitosas, cujas vibrações sonoras sua câmera de produzir fotografia não tem pretensões em nos apresentar tal e qual, pois não lhe cabe mesmo apenas mostrar. Mais que isso, interessa-lhe a sugestão ou, ainda melhor, a transformação do que diante dele se apresenta. Entre suas escolhas deliberadas está a exclusão da figura humana, produzindo sítios assépticos onde reinam a sós tais máquinas empoderadas de brilhos e recursos. 

Muito se diz e muito se vê em relação à região Norte do Brasil. Sobre esses recantos de enormes proporções há uma iconografia muito peculiar já intensamente registrada e interpretada por vários artistas locais ou passantes. A luz do Norte é mesmo vigorosa e através dela recaem cores em sua geografia e em seu povo tantas vezes aludidos. E, quando não mais nos surpreendemos com tanta facilidade, Thales Leite volta de sua viagem fabulosa trazendo diamantes, príncipes, rubis, águias de fogo, máquinas do tempo. Outras luzes, outras cores para um velho código de área.

(1).“As pessoas viajam para ver o que já sabem que vão encontrar.” Nessia Leonzini. Brasil Desfocos: o olho de fora. Centro Cultural Banco do Brasil, 2007, p. 33.

Rodrigo Braga é Artista Visual
Área 91 (Ed. F10, 2016)