A dádiva da abstração não é a forma tornar-se auto-referencial, fim em si mesma, mas a consciência que nos deu de que uma estrutura anti-naturalista desperta outra percepção do mundo. Uma percepção menos encantada com o aparente e menos prisioneira do reconhecível, menos fixa na relação forma/fundo, menos polarizada entre o tangível e o horizonte. A sua profundidade, a sua linha de fuga está naquela poesia que se alimenta da precariedade dos materiais, das cores, dos planos, dos pontos, das sílabas, das palavras, dos tecidos, da tessitura e plasticidade das coisas. Uma poesia da plasticidade que se torna ela própria, na sua natureza, sentido. E perante essa evidência, muitas vezes hermética, incompreensível, aprendemos que há partes do mundo, da existência, da sensibilidade, que se distinguem desse mundo dado pela imagem familiar, pela atmosfera discernivel onde somos incessantemente a mesma coisa até à condição intransitiva de sermos mercadoria. A abstração não é um escapismo da dimensão orgânica, palpável do mundo, não tenta substituir o mundo pela sua ausência mas relevar que é na sua materialidade e na sua materialização, é nos átomos, moléculas do que está fora do nosso corpo mas também dentro da nossa imaginação que podemos começar a falar da essência das coisas. Parece ambíguo começar por aqui para falar das experiências artísticas de Clarissa Serafim que se focam do têxtil, na tecelagem e na tapeçaria de conteúdos recuperados, salvos do mundo sem fim do consumo. Mas a abstração existe nos seus materiais, na composição e continuidade da sua tessitura, nas escolhas cromáticas, nos tecidos e observando o seu trabalho convivemos duplamente com a opacidade do "isto é assim" e com a sensualidade óptico-táctil de superfícies (a tapeçaria) que vem da natureza, são natureza (finita, perecível, biológica) mas "falam", constituem-se como imagem (anicónica) daquilo que também está na natureza mas só a ação humana consegue ativar. A prática de tecelagem de Clarissa incorpora a experimentação, a arte da combinação, da tentativa e erro e incorpora também literalmente a palavra, escrita, incluindo pedaços pacientemente recortados de folhas de um diário pessoal. A experiência proporcionada pela criatividade de Clarissa diz-nos que ainda há muito terreno vago, interstício, descampado, enclave, na imaginação à espera de ser tecido pelas nossas hesitações metafísicas! Sobretudo fala-nos da delicadeza com que a imaginação nos permite viver para além da finitude.
Pedro Pousada (Artista plástico e Professor)
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Olhar para Clarissa Serafim é olhar também para seu trabalho. Um trabalho que está sempre em processo de vida - atento ao jogo do tempo, ele desafia e ri das intempéries. E percebemos esse riso majestoso no desfiar dos tecidos que se conjugam a outros sob a maestria de suas mãos e que parecem nos dizer:
...não há nada que possa me deter. Nem mesmo o desfazimento, nem mesmo a sujeira, o pó, o vento... nem mesmo o sol forte que lambe minhas cores, a chuva, a noite, o sal da água do mar... porque eu nasci justamente para dizer que meu brilho se faz no
movimento. Renasço em cada rasgo.
Olhar para os painéis de tecidos, para as tecelagens, para o conjunto de seu trabalho é olhar também para Clarissa Serafim. Uma mulher que, já tendo vivido o glamour do mundo da moda, tem o olho experimentado pelo ouro e sabe tirar o véu de tudo o que brilha sem o lastro da verdade. Como seu trabalho, mais do que rir, Clarissa gargalha – e isso é bonito de se ver! – quando se vê frente à precariedade. Isso porque ela bem sabe que é por conta da precariedade é que a vida é preciosa. Voilà, c’est le glamour.
Isso é o que ele quer dizer –
Para Claire
[Lu Lessa Ventarola. Coimbra, 14 de maio de 2021]
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O paraíso moribundo
“L’art agit mal et agit peu.”
Maurice Blanchot
A experiência dialógico-fictícia que apresento aqui decorre do trabalho artístico “Hors D’oeuvres” desenvolvido por Clara Sampaio e Clarissa Serafim; é, se quisermos, uma reação poética ao processo regenerativo (de alimentação e partilha) e generativo (de criação plástica, de processos de integração -num contexto de fome e dano- e de auto representações em ato) que ambas as artistas tem desenvolvido enquanto coletivo em situações específicas e com caráter público. O primeiro evento ocorreu na Galeria do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra no contexto da bienal Anozero 2019 e esta segunda situação, na residência artística “Fauna” que realizaram no teatro da Discadália em Vila Nova de Famalicão. Os dois acontecimentos gravitam no potencial micropolítico do ato artístico – esse agregado de ações que tenta, nem sempre ou quase sempre sem êxito, resgatar as subjetividades da agitação de si para si e reposicionar a duração quotidiana abalando-a. “Hors d’oeuvre” aproxima-se, por casualidade-ou pela inevitável redundância das experiências artísticas- da técnica do “push and pull” inaugurada por Hans Hoffman no campo da pedagogia artística e aprofundada mais tarde por um dos seus alunos, Allan Kaprow, no âmbito do “happening”- e apesar da ausência de protocolos de comportamento e de interação há algo do happening nas experiências de Clara e Clarissa: um certo “vamos ver o que acontece”. Hoffman tinha como principal premissa fornecer as referências necessárias e atualizadas sobre o modernismo aos seus alunos, colocando-os perante os ingredientes da narrativa consolidada da história recente das vanguardas- cubismo, futurismo, expressionismo, dadaísmo, suprematismo, construtivismo, abstracionismo, surrealismo, etc.- isto ele chamava de “push”- empurrar o aluno para dentro da realidade- e depois retirava-se - o que designava por “pull”- não interferindo nas decisões e escolhas tomadas por cada um no “atelier”. Kaprow levou este modelo de ação para a experiência da exterioridade, para além dos limites do cavalete e explorando a relação corpo e espaço sendo dadas as premissas e os materiais mas não o desígnio performativo. Foi esta a sensação da primeira ação imersiva de “Hors d’Oeuvre no espaço do Quarto 22 na Galeria do Colégio das Artes ”em 2019: fomos atraídos, empurrados para uma evidência - uma mesa repleta de iguarias e vinho- numa atmosfera estranhamente relaxante e de penumbra; apesar da abundância e da gratuitidade a pequena multidão ali reunida manteve-se demoradamente distante da degustação num pudor silencioso. A atmosfera tinha tanto de letárgica como de pueril; quase que podíamos permanecer de olhos fechados e esquecidos de tudo que o silêncio e a vergonha dos outros não captaria a nossa dormência. E aquela assembleia de vultos gravitando em torno de alimentos, somada à hospitalidade pudica, todo aquele “estado estético”, lembrou-me, na altura, os momentos titubeantes e expectantes que precedem a euforia e o excesso quando todos esperam que o mais ousado, o menos socialmente inibido se revele e como uma lebre do atletismo leve todos atrás da caminhada descendente e ciclónica da festa.
Foi já no final dessa euforia que imaginei o diálogo que se segue:
Debaixo da mesa de um banquete, procurando um brinco ou um garfo ou uma lente de contacto, 3 comensais filosofam:
O cético diz (com a pele dorida de uma refeição snack-bar):
-Um banquete é, para abusarmos mais uma vez da riqueza reflexiva de Walter Benjamin, uma manifestação em simultâneo da civilização e da barbárie, um lugar ambíguo portanto, de costuras frágeis, onde a narrativa (o prazer da oralidade, de contar estórias, de acordar memórias dormentes, a fala desabrida do vinho, também ) e o desastre (uma discussão política, um homicídio) circulam num equilíbrio tenso cheio de silêncios e olhares atrapalhados. Nessa dualidade os bárbaros podem estar bem vestidos, ser modernos e sofisticados, conhecer a etiqueta e fazer uma elegante pirueta entre Apolo e Dionísio, enquanto celebram a guerra e o extermínio. Estou a pensar no "" Anjo exterminador" de Bunuel e no "Savages" de James Ivory, na burguesia liberticida que aplaudiu Hitler, Pinochet, Thatcher, em inúmeros banquetes. A civilização, essa ficção precária, sempre em crise existencial, arruma-se entre os envergonhados sem jeito e os tímidos e misantropos que são convidados para estes eventos para produzirem o calor cáustico que garante a elevação espiritual da comensalidade prosaica. O banquete é o riso feliz mas com o grito a espreitar por detrás do ombro.Eis, portanto, uma instituição animada, acolhedora humanista até mas com um canto reservado à monotonia e outro ao monstruoso (sendo que este canto pode puxar a toalha e levar tudo pelos ares). É a vergonha também, misturada com o amor à vida. A estupidez da conciliação de classes à espera com embaraço (com fominha) e com euforia (simpósica) que todos se entendam e que se concretizem saborosos diálogos, sem nódoas ou com nódoas, tanto faz. Claro que todos tacteiam as bordas da mesa banquetária à espera de saltarem para dentro ou saírem para fora. Não há meios termos. Fica-se até ao fim ou foge-se o quanto antes. Sim, o banquete tem esse lado irritante da conciliação de classes: o padre, o sindicalista amarelo e o velho político (quase quase genocida mas agora pintor de domingo) podem brindar aos nubentes, ao premiado, ao amigo artista, ao escritor emérito, à florence nightingale da ong que vai apaziguar a infelicidade ultramarina ou mesmo ao filósofo que ninguém liga realmente... É só escolher o homenageado... Sim, a conciliação de classes, a toalha nappe blanche da paz social, crime maior do centrismo, é a textura de muitos banquetes. Reunir como se tudo estivesse bem. Um banquete sem florilégio é um dia sem sol dir-me-ão... Há qualquer coisa de um beco sem saída nisto tudo: banqueteamo-nos na finitude com o que isso acarreta de desperdício, de irrecuperável, de tempo perdido. pensamento e comida funcionam como oferenda, como despojo, como entrega como exigência, como mais e mais e mais qualquer coisa. Tal como uma guerra toda a gente sabe começar um banquete. A alegria voraz e contagiante ou um pudor comedido criam o ambiente. Mas o que ninguém sabe é como ele vai acabar ou sequer como o acabar.
O festivo (ainda cético mas muito pouco) acrescenta:
-Mas este jogo pendular entre previsto - imprevisto terá sempre um tom sibilino e uma bonomia campestre! A coroa de espinhos pode ser florida e perfumada. Para quê o noturno cego da dor na hora do convívio? O sublime desta experiência de comensais em animada dissolução de vitualhas e liquores não está na plenitude do fim em slow motion, nem no crepúsculo do banquete, mas está na forma como os raios de sol que emanam dos sujeitos felizes e como as risadas edenicas tentam ignorar, ou fingem ignorar, que a morte ou a insolvência são problemas humanos. Choremos amanhã, hoje festejamos. Não vale a pena antecipar o vinho derramado ou a sopa azeda. Penso no "Joie de vivre" de Matisse quando digo isto mas com a desfiguraçao comensal da abundância. Pantagrueis desnudados e desnudadas petiscando na relva imaculada. Eu sei que não há corpos despreocupados, desconexos, entediantes no seu esquecimento do mundo alimentando-se divertidos, egoístas, inevitavelmente, na sua (sobre)vivência fágica. Estamos condenados ao dia seguinte mas respiremos o veneno da ilusão por uns segundos: "que bom! ... Espero que dê para repetir...", "mais vinho!", "Que sabor diferente este pão, regueifa...", "é grátis?!?". A música, a dança, os corpos enlevados pela palavra comum, o ócio... Ao menos por uns breves momentos. Ao menos uma fotografia disto tudo para nos esquecemos que a intimidade é incomensurável e impenetrável.
A otimista (embriagada com o realismo de que vamos todos apodrecer e morrer):
-Não adianta olhar para as manchas da toalha e imaginar batalhas. Pensamos bem ou mal mas o banquete é isso mesmo: o antagonismo existe, a guerra civil existe mas é preciso alimentar o corpo e os inimigos podem sentar-se à mesa e continuar a ser inimigos. O diálogo não é o sonho da harmonia mas a clarificação dos campos. No banquete partilhado tomaremos partido. À comida oferecida perguntaremos: quem te fez? Quem odeias? Quem te acordou? Quem te matou?
Falemos portanto. A comida apagará os fogos... Por enquanto...
Pedro Pousada (Artista plástico e Professor)