Limiares entre a vida e a arte

Texto publicado no jornal “O Regional” de Catanduva [21 de junho de 2017]

Convém primeiramente enfatizar que a maneira como a(o) outra(o) vê o que eu produzo em arte pode não coincidir com a maneira como eu mesmo avalio a minha própria produção. Com uso do meu corpo como um veículo e suporte da arte, as minhas concepções artísticas são muitas vezes autobiográficas, mas não meramente autocentradas; elas estão quase sempre enquadradas numa específica micropolítica engajada, mas o mote fundamental de cada procedimento e construção que instituo como vivência pessoal acaba por levantar questões que dizem respeito também a quem observa as minhas obras ou participa delas. 

Ontem, vinte de junho, foi o meu aniversário e, em dois mil e treze, eu decidi fazer de todos os meus aniversários seguintes àquele ano uma data para efetuar sempre uma nova performance, considerando o tal rito de passagem como um momento para eu comemorar um ano a mais de vida e lamentar o meu inevitável fim. Criei, assim, uma série de performances chamada Memento Mori, através da qual considero toda eficácia transformadora de um ritual juntamente com a noção artístico-estética que imprimo no evento através da expressão da performance.  

Nasci às vinte horas no ápice da festa de aniversário da minha irmã do meio, antecipando o grande momento do “parabéns a você” e do corte do bolo para, então, abandonar o útero materno às vinte horas. Antes de ir ao hospital, minha mãe cumpriu às pressas todas as etapas tidas por obrigatórias no rito de passagem do aniversário, mesmo sentindo as contrações que anunciavam o meu surgimento. Havia ali uma colagem de eventos numa única data: um aniversário e um nascimento.

Explorei variadas relações sobre o rito em questão nas ações que realizei, em algumas ações, levei em conta a recombinação das nossas matérias corpóreas como uma forma de eternidade num sentido schopenhaueriano, em outra, sob um preceito lacaniano, especulei como não compreendemos os nossos corpos como autônomos nos primeiros meses de vida e, em absolutamente todas, busquei signos da data festiva para convertê-las em códigos mórbidos. Ao todo, tenho cinco trabalhos dessa série cumpridos: Proxim(a)idadeReversoIndestrutívelPassagem e, recentemente, Ponto Comum.  Todos esses trabalhos são repetidos em diferentes contextos e isso é muito importante para que o rito seja transformado em expressão absolutamente artística.

Nessa nova performance, a qual realizei com a participação exclusiva de Paola Frey, conectei algumas disciplinas que hoje me interessam bastante e, dentre elas, a escultura, a dança e, obviamente, a performance, mantendo o corpo como pivô da obra. Ainda, direta ou indiretamente, a moda está muito presente em grande parte dos trabalhos que desenvolvi ao longo da minha trajetória prática ou teórica e, em âmbito da arte, tenho dedicado extremo comprometimento investigativo com relação aos assuntos atrelados ao corpo e aos signos postos, impostos ou compostos sobre ele ou por meio dele. Analiso códigos estabelecidos entre o corpo e a moda e proponho novas versões e também subversões sob o anseio de oferecer posicionamento crítico e político a quem acessa o conteúdo de cada uma das minhas criações artísticas. Isso pode ser notado tanto na minha performance de aniversário como na que vou apresentar hoje – quarta-feira (21) –, nomeada por Finitas Contagens Para Infinitas Variações, que também pode ser entendida como um concerto de música noise.





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Barking Dogs
Juliana Pinho

Texto de Juliana Pinho  publicado em: Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais (Vol. V, n. 43, abril de 2012, ISSN 1983-0300).

No princípio não era o Verbo. No princípio era o ecrã de televisão parado, com um conjunto de riscos coloridos em contagem para a abertura da emissão. Em nosso princípio, no princípio de uma sociedade sem grandes princípios, a televisão marca o ritmo dos acontecimentos. Mas não fiquemos por aqui, pois também no princípio o autor e ator se apresenta: ele é Tales Frey a interpretar Tales Frey. Mas não é por habitar essa personagem, como numa consubstanciação, que se torna mais fácil para Tales interpretar Tales. O autor principia com os avisos iniciais – cinco avisos, bem explicados, como bem aberta está a sua mão – tal como numa liturgia. Aqui, este Te Deum é para a glória de Tales Frey, que durante a sua performance alcança o estado quase virginal (como podemos ver quando se despe, qual Adão antes do pecado). Após os avisos, ditados de cima de um banco, como o clero no púlpito, Tales começa a nos mostrar cada um dos cinco episódios, intercalando-os com uma pequena coreografa que tem

muito em comum com a de Jan Fabre (My Movements Are Alonelike Street Dogs), mas que, aplicada como introdução para cada um dos episódios, tem algo também de obsessivo-compulsivo, algo de extremamente doentio. Aos poucos percebemos que Tales vai se transformando num exemplar canino. E por que o cão? O cão está presente em todos os episódios. Ele atinge o grau de Adão, mas logo em seguida entra na zona diametralmente oposta à do Homem na escala da evolução. O cão é a posição que ele ocupa do outro lado da escala. Já nas histórias que conta, todas relacionadas com cães – autobiográficas ou não –, Tales Frey passa de uma posição de comiseração e carinho endereçada aos diferentes cães que as habitam para uma atitude impiedosa. Quando nu, Tales-cão, que não esquece sua origem humana, corre a vestir-se, mas demasiado tarde, já que incorpora parte da

natureza canina. Não se choca, por isso, com a passagem do célebre episódio de Um Cão Andaluz, de Buñuel. No espetáculo Espasmos Caninos, que teve lugar no Porto, no dia 25 de março, no Tômbola Show, realizado no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, o público não pareceu particularmente incomodado com a imagem do corte de olho que o filme tornou célebre. Note-se que este olho não era, no filme, um olho humano. Era o olho de um

animal. E nesse processo de transformação, que passa pelo dono do cão (Tales Frey) vestir e calçar a pele do cão, apercebemo-nos da referência concreta a Deleuze. O público passa então a entreter e alimentar o cão com um alimento-objeto, e o cão, como que treinado, tenta acumular e transportar tudo o que recebe do público. Acontece porém que os cães treinados, quando aliciados por dois objetos, não tentam devolvê-los ao mesmo tempo, numa só viagem. Mas o cão com o qual nos ocupamos neste artigo, que ainda é homem, que vive as duas naturezas, tenta fazê-lo em vão. Num último estertor, e numa alusão ao filme Último Tango em Paris, opta por tentar transportar o objeto dentro das calças. Note-se que os objetos em questão são pacotes de manteiga. Na apresentação que teve lugar no Porto, a interação com o público foi constante e por vezes até desarmante, já que o público riu quando das histórias mais pungentes de cães mortos. Estaremos nós, como Tales Frey, em transformação canina? Se sim, uma

nova liturgia irá erguer-se: a liturgia que nos permite amar um animal como se fosse da nossa natureza, mas nos enclausura numa espécie de amor incondicional que não obtemos dos outros.

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Imagem e Dessemelhança

Dinah Cesare

Texto de Dinah Cesare  publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, ano 1, n. 3, março de 2013, ISSN 2316-8102).


Intercessores

Mudança do lugar de quem olha – consequência de assistir a uma performance capturada por dispositivos. Entramos no âmbito que afirma as possibilidades das imagens. O pensamento a

respeito das noções e experiências da imagem que surgiram na imbricação entre as linguagens e manifestações artísticas das artes contemporâneas necessita, por si só, de uma visada que procure

por derivações. Para Deleuze e Guattari, o papel da filosofia é criar conceitos. Eles consideram ter criado pelo menos um de fundamental importância – o de ritornelo. O ritornelo é um problema relacionado ao território, referente às entradas e saídas do território. Então, isso nos leva à compreensão de uma nova pretensão do conceito de desterritorialização: é que não há território sem vetor de saída, e não há saída do território sem, ao mesmo tempo, um esforço de territorialização. As imagens da videoperformance

interessam, sobretudo, por seu aspecto de partilha, de disponibilidade no mundo e por sua conjugação entre olhar e imaginação. Em Re-banho existe um desconforto experimentado com a rememoração do vivido no espaço topológico da cidade – reside aí uma espécie de edificação mítica que instaura um campo de batalha. Uma batalha contra a paralisia que o mito e seu regime de crença fortalecem.



Impressões da imagem

A primeira visão que o vídeo nos dá é de cima. Performers, baldes e uma sonoridade de respiração. Se nesse momento estamos claramente em um lugar de observador, outras tomadas nos colocam juntos aos performers – a câmera como personagem que escolhe os ângulos de visão. Acompanhamos o percurso realizado na rua quase como testemunhas. Esse movimento insinua um apagamento do primeiro, mas, juntos na montagem, faz pensar na ideia inversa – talvez estejamos sempre sendo vigiados, porém, ironicamente, por nós mesmos. A ação que testemunhamos se volta e nos olha. Muitas vezes, querendo ou não, nos vemos investidos em ajuizamentos.

A sonoridade da respiração imediatamente se mistura ao som urbano. John Cage disse em uma entrevista que, quando escuta música, parece, para ele, que alguém está falando, como se escutasse alguém falando sobre seus sentimentos ou sobre suas ideias de relacionamentos. Mas quando escuta o som do trânsito, tem a sensação de que o som está em ação. É como uma atividade do som que ele adora. Realizar a apropriação da ideia da atividade do som urbano em Re-banho tem o caráter de fazer surgir certos questionamentos que misturam a cidade e o corpo que age. O que é espaço externo? A cidade ou o corpo, na medida em que os dois viram agentes? Não estaríamos processando uma interioridade da cidade? Se o desejo máximo da subjetividade é adquirir uma insistente individualidade, a ação privada do banho realizada em espaço público empreende um movimento que refuta o natural. E se esse é um modo pelo qual no mínimo designamos alguma coisa por arte – contraponto ao natural –, dá-se um embaraço no ajuizamento, tanto do que seria o natural como do que seria o construído. Assim, nossa noção mesma de subjetividade !ca desterritorializada, derivando entre essas polaridades. Nossa sorte será encontrar um ponto de fuga. Talvez a fuga possível seja se voltar para a realidade e investigar seu caráter de construção. Re-banho focaliza o corpo alegorizado, quase como uma montagem de ícones. O vídeo faz o trabalho de recorte dos corpos-como-ícones diante da igreja. Na visão frontal, com os performers de costas, ela se mostra com força de monumento. As variações das imagens que nos chegam não impedem a a!rmação de alguns motivos iconográ!cos que se repetem e, assim a!rmados, tomam a feição de um evento histórico. À igreja é atribuído um valor de testemunho que, pelo menos em alguma medida, depende da atividade mental de uma época. Vemos, então, duas épocas em um confronto materializado no corpo – estatuária de de Aleijadinho que aponta criticamente para o que a criou. Por meio da ação dos performers em se banhar vestidos, esfregando o corpo com água e sabão por baixo das roupas severas, cria-se uma espécie de escritura. Talvez uma nova escritura, uma liturgia às avessas que transforma a função da água. Ela não limpa, não acalma, mas quase que escarna os corpos. Nesse sentido, a imagem é simultaneamente texto. Um texto escrito pela fricção que coloca em xeque aquilo que consideramos nossa identidade: legado de autodestruição. O (re)fazer que acontece na exibição da videoperformance menos confere eternidade ao presente especí!co da ação do que instala novas atualizações. Se o peso do testemunho tradicional se perde com a imagem reproduzida, a atualização do fenômeno parece se aproximar do que Walter Benjamin ressaltou a respeito das possibilidades da reprodução técnica de “colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar o indivíduo da obra”. Outras implicações do corpo em Re-banho sugerem um modo de se relacionar com a questão divina da imagem assimétrica que origina o homem. Como nos diz Viviane Matesco em um texto esclarecedor, o pecado original introduz a dessemelhança de uma imagem decaída. A semelhança cristã, por mais que não se repita muito isso por aí, está pautada numa hierarquia, pois !xa uma cópia que se assemelha ao seu modelo, mas o inverso não é possível. A relação modelar do corpo cristão é com uma imagem; assim, existe uma necessidade imposta de mediação. Então, o que parece ser escrito pela imagem é a dessemelhança, que deixa de ser um tema e inclui o outro na ação.

A formulação básica do “coe!ciente artístico” de Marcel Duchamp é que a obra de arte se abre no espaço do receptor, na temporalidade que vai detectar uma intensividade na obra.

A arte que comumente chamamos de contemporânea, mais do que querer estabelecer lugares idealizados, procura por modos de convivência no espaço público em meio a nossa atualidade de experiências fragmentárias. O lugar do corpo inscrito na dessemelhança de Re-banho se refaz de uma teleologia que o fundamenta.

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume

1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 168.

MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

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