A TRADIÇÃO DISRUPTIVA - Antiarte e Poesia por outros meios Ampliar

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A TRADIÇÃO DISRUPTIVA - Antiarte e Poesia por outros meios

Vídeo-Palestra-Performance

[ALEX HAMBURGER]  

VÍDEO-PALESTRA-PERFORMANCE [2019]

Trabalho apresentado no "Conceptual Poetic Day", 

Evento realizado no âmbito da feira  "Miss Read - The Berlin Art Fair”.

Duração: 23'49"

Registro em vídeo: Suely Torres

Mais detalhes

 

A TRADIÇÃO DISRUPTIVA – Antiarte e Poesia por  outros meios 

 

 

Sobre a validade destas prospecções, que poderão traçar um razoável perfil dos potenciais da antiarte e da poesia por outros meios q não os tradicionais irei valer-me, do relato de algumas experiências pessoais como premissa para o que pretendo narrar. No Rio de Janeiro, nos primeiros anos da década de 80, imbuído de considerável rigor teórico, propus, quase simultaneamente com um pequeno número de artistas marginais, embora não na condição de um programa grupal, o advento da performance como uma linguagem propulsora de novas possibilidades de atuação, remando contra várias correntes sedimentadas do circuito local e também contra o descaso e desinteresse do circuito em geral, incluindo os próprios agentes culturais (artistas, mídia, críticos, historiadores, curadores), órgãos institucionais (museus, galerias, academias), tendo sido considerados pela maioria menos do que outsiders, para usar um imagem talvez um pouco forte, como quase ‘dalits’,  os “intocáveis” ou “invisíveis” da sociedade de castas da Índia, e isso mesmo numa época de grande efervescência artística na cidade, que inclusive deu origem ao emblemático evento do Parque Lage,  “Como vai você geração 80”, que abriu novos horizontes às artes visuais cariocas, quiçá brasileiras. Não obstante termos sofrido essa desestimulante discriminação do circuito (acredito que talvez mais por desconhecimento do que por desaprovação), o que se verificou após um certo tempo foi uma verdadeira explosão da “arte-performance”, que começou a ser praticada de forma bastante consistente nos quatro cantos do país, sem falar que o termo passou a ser utilizado por inúmeros segmentos sociais, das artes à literatura, da publicidade aos esportes, do jornalismo aos mais variados assuntos até ao ponto, segundo entendi, de começar a sofrer um certo  processo de diluição, comprometendo a sua  proposição questionadora primordial.

 

Um outro momento decisivo em que detectei fortes ventos renovadores foi no início dos anos 90, após participar ativamente do antes quase inimaginável voo alçado pelo ‘fenômeno performático’, quando pude perceber que aquele era o momento certo em se ativar novas formas de expressão no terreno da Poesia, onde, apesar de possuirmos uma considerável experiência do campo ampliado, como o modernismo, o concretismo, um pouco o neo, o poema processo, etc., não houve no Brasil a poesia experimental dos sons, que segundo o poeta e pesquisador paulista Philadelpho Menezes, se deveu, entre outros motivos, pela canalização da experimentação para o campo da visualidade e da forte presença da música popular com um razoável grau construtivo, aspectos que esvaziaram o potencial disruptivo da sonoridade em poesia.

 

Com a publicação inaugural de “12 Sonemas” em 1993, primeiro em fita-cassete, a mídia à época mais afeita, regravado em CD em 2014 (MOSTRA NA MÃO) passo a entabular com alguns poucos mas essenciais interlocutores um diálogo promissor no sentido de desenvolver novas fórmulas no campo da invenção poética, mais especificamente a “Poesia Sonora”, estabelecendo um interessante intercâmbio com o referido poeta e jogando um pouco de luz no instável cenário local das poéticas expandidas, experiência que apesar de ter iniciado um certo resgate entre nós no campo de experimentações  mais radicais, não obteve o mesmo êxito das iniciativas em arte-performance, principalmente devido ao falecimento prematuro do poeta paulistano e a conseqüente paralisação das atividades do seu ‘laboratório de escuta’ que ele mantinha na PUC-SP, que começava a permitir um maior aprofundamento nas pesquisas e avanços na área, embora tenhamos podido, ele com mais intensidade do que eu, devido às referidas condições, introduzir um pouco a “poesia sonora” no mapa da arte contemporânea brasileira. Fechando uma espécie de trilogia, lanço em 2014, “Tele-fonemas”, no qual os “textos” são mensagens de amigos deixadas na minha secretária eletrônica, ou seja, algo que considero uma poesia de extração altamente radical (uma verdadeira “anti-poesia”) onde não utilizo praticamente elementos literários, como metáforas e signos expressionistas e simbolistas, mas apenas e tão somente o aparelho fonador (a voz humana despida dos artifícios q ainda havia em peças como Muiia) mas creio que em estrita coerência com o meu propósito de não mais aceitar o pra lá de desgastado suporte hegemônico da palavra.

 

Tendo tais relatos e fatos como cenário, gostaria de aventar se esse não seria o momento adequado para considerar a antiarte e a poesia por outros meios, se não como novos paradigmas, o que até seria uma pretensão em tempos tão heterogêneos, pelo menos como uma possível discussão sobre o legado e os mecanismos da tradição inovadora, aquilo que a crítica de arte americana Marjorie Perloff chamou de retaguarda, que é um compromisso com a recuperação do experimental, o seu resgate para as novas gerações, algo que até poderia nos impelir, porque não, a lançar o conceito de retavanguarda, embora creia que coisas desse tipo são muito difíceis de se concretizar numa cultura que não vê com muito bons olhos a ferramenta disruptiva. Dentro de um quadro como este irei dispor e examinar resumidamente os precursores que tem ensejado essa minha não muito palatável cruzada.

 

MARCEL DUCHAMP

 

Um dos maiores nessa linha de pensamento como não poderia deixar de ser é Marcel Duchamp, onipresente nessas especulações. Duchamp era contra o termo “anti”, porque ele é um pouco como o ateu na comparação com o crente. E sendo o ateísta alguém tão religioso (talvez no sentido de ter fé, ou melhor, de acreditar em algo) quanto o crente, o anti-artista é tão artista quanto qualquer artista. Ele preferia an-artista (un-artist), que significa não-artista total. Esta seria a melhor concepção segundo o (anti)mestre! E completava: eu não me importo de ser um ‘não-artista’, não se importando inclusive com a semelhança homofônica entre ‘anartista’ e ‘anarquista’. Contudo, como afirmou em 1956, “o niilismo é claramente impossível, pois nada é alguma coisa”.

 

Além de ter sido um dos maiores precursores no campo, seu maior legado, como todos sabem foi a invenção do readymade,  que declarou ser esta técnica “uma obra de arte sem ter sido feita por um artista”. 

 

Dizia também que “a verdadeira finalidade dos readymades era a de negar a possibilidade de definir a arte”; e “q nunca pensou em fazer obras com eles, nem expô-los em público, além de que “nunca conseguiu chegar a uma definição que o satisfizesse por completo”; que o que o moveu de verdade foi o impulso em tentar desacreditar o “artesanal” e a busca por escapar do “gosto” e do sentimento artístico de “criação divina” e do mero prazer visual, utilizando no lugar, estratégias do acaso e da indiferença. Isso me parece da ordem da expressão do Da Vinci: “cosa mentale”.

 

Mais de 100 anos depois (“Roda de bicicleta” é de 1913), apesar do seu caráter subversivo original ter perdido grande parte da sua consistência, muitos desses objetos icônicos ainda exercem uma certa magia, mas principalmente nos habilitam a questionar a arte e a história da arte e no que se constitui um artista.

 

 

GUY DEBORD

 

Foi o mentor dos “situacionistas’, grupo de vanguarda parisiense que talvez mais influiu nos acontecimentos de maio de 68 na França, e que tinha como uma das metas a “superação da arte” por meio do detournemènt (desvio, reemprego, reutilização),  da deriva e do urbanismo unitário, e cujo pivô de agitação era a revolução da vida cotidiana.

 

Num primeiro momento, a “superação da arte” apresentou-se para Debord sob a forma de “letrismo”, tendo por modelos Lautréamont e o aventureiro e antipoeta Arthur Cravan. Tratava-se dos letristas de Isidore Isou,  poeta romeno que propõe, em 1947, ao mundo cultural parisiense, ainda o epicentro da inovações mundiais, uma completa renovação não só nas artes como de toda a civilização e do pensamento. Retomando a carga iconoclasta dos dadaístas e dos 1ºs surrealistas, Isou quer levar até o fim a autodestruição das formas artísticas iniciadas por Baudelaire. No letrismo de Isou, já se encontra boa parte do espírito que mais tarde caracterizará Debord e os situacionistas: antes de tudo a convicção de que o mundo inteiro deve ser desmontado, e, depois, reconstruído. Declara-se morta toda a arte tradicional para passar a vigorar o ‘afastamento’, que era uma espécie de colagem, técnica que reaproveita elementos já existentes para novas criações, tanto na literatura quanto no cinema, artes visuais, etc.

 

Debord, contudo, não se preocupa com a realização de uma nova estética, quer é acabar com a mais recentes das artes. Na sequência, entra em rota de colisão com Isou e os letristas, repudiando-os pela sua idolatria da “criatividade”, que considerava um perigoso idealismo. Acusa-os de serem demasiado positivos e demasiado artistas.  

 

Mas, no lugar de criar formas inteiramente novas, e aí se encontra a sua importância histórica, querem retomar elementos já existentes para dispô-los de modo distinto. A esta técnica do “reemprego”, q remonta à colagem dadaísta e às citações deformadas chamam de “afastamento”, que significa “desvio”, mas também subtração ou sequestro. Trata-se de uma reutilização que adapta o original a um novo contexto, uma maneira de superar o culto da originalidade. Para a consecução dessas novas formas utilizam-se de produtos os mais insignificantes como a publicidade, (os quadros) kitsch, que reproduziam, os desenhos animados, q eram compostos com novas legendas, etc. Os filmes de Debord eram realizados exclusivamente à partir de fragmentos de outros filmes, etc. Num sentido mais amplo na concepção social de Debord, todos os elementos para uma vida livre, tanto na cultura como na técnica, já estão presentes no mundo, já são pré-existentes, é necessário apenas modificar o seu sentido e organizá-los de outra maneira.

 

Na sua intensa crítica aos valores consagrados, prossegue afirmando que não há mais lugar para a obra de arte que tende à “fixação da emoção” e à “duração”. A arte não deve mais expressar as paixões do velho mundo, mas contribuir para inventar novas paixões: no lugar de traduzir a vida, deve ampliá-la.

 

Os objetivos dos situacionistas não se limitavam, pois, a uma revolução puramente política nem a uma revolução puramente cultural. Projetavam a formação de uma nova civilização e de uma real mutação antropológica. No seu auge, 1958 – 1961, todas as suas atividades são colocadas sob o signo da experimentação e do afastamento, com ênfase no abandono de toda “obra” que visa a durar e ser conservada como mercadoria de troca, e não para substituí-la por uma “arte sem obras”, como o happening e a performance, mas por uma (anti)arte anônima e coletiva, uma “arte do diálogo”, que pudesse superar a dicotomia entre momentos artísticos e momentos banais.

 

 

ALLAN KAPROW

 

Que eu apelidei carinhosamente de AK-47, é conhecido como o criador do happening. Desde 1958, quando realizou os primeiros environments (instalações-ambientes), sua ação como artista passa a ser uma proposição de integração de espaço e materiais em que o visitante é envolvido, numa relação em que o espectador assume a co-criação. Tendo estudado com John Cage, trabalhou com Nam June Paik e com o grupo Fluxus, e, assim como Vostell, outro fluxista célebre, via íntima relação entre arte e vida. Seus happenings mais conhecidos são o emblemático 18 Happenings in Six Parts, Calling, Gas, Fluids e BTU’s.

Segundo Allan Kaprow, nesta sinopse que aqui reproduzo do seu seminal ensaio “A educação do não-artista“, como meta humana e como ideia, a arte está morrendo - não apenas porque ela opera dentro de convenções que deixaram de ser férteis, mas porque preservou suas convenções e criou um cansaço crescente em relação a elas.

Então, qual seria, afinal, a saída? Ele sugere que o primeiro passo prático nessa direção seria evitar todos os papéis estéticos, abandonar todas as referências de sermos artistas, de qualquer tipo. Claro, ele prossegue na sua proposição, ao se partir da arte em si significa que a idéia de arte não pode ser facilmente eliminada (mesmo que alguém sabiamente nunca profira a palavra). Mas é possível deslocar com astúcia toda a operação “não artística” para longe de onde as artes habituais se reúnem, para se tornar, por exemplo, um executivo de finanças, um ecologista, um dublê, um político, um vagabundo da praia. Nessas diferentes capacidades, os diversos tipos de arte discutidos operariam indiretamente como um código que, ao invés de programar um curso específico de comportamento, facilitaria uma atitude de ludicidade deliberada em relação a todas as atividades de profissionalização, muito além da arte.

Segue-se que as convenções de pintura, música, arquitetura, dança, poesia, teatro e assim por diante podem sobreviver em uma capacidade marginal, como pesquisas acadêmicas, como o estudo do latim, por exemplo. Além desses usos analíticos e curatoriais, todo signo aponta para sua obsolescência. Da mesma forma, galerias e museus, livrarias e bibliotecas, salas de concerto, palcos, arenas e locais de culto serão limitados à conservação de antiguidades, ou seja, ao que foi feito até agora em nome da arte.

O artista experimental de hoje, Kaprow calcula, deveria ser o artista esvaziado de arte, evitando praticamente todos os elementos convencionais que poderiam fazer alguém se lembrar de arte. O não-artista, ele conjectura, não faz arte real, mas o que ele chama de arte como vida. E completa dizendo eu acho que isso é bem mais interessante do que criar novos trabalhos, fazer coisas artesanais, mesmo as conceituais.

 

KENNETH GOLDSMITH

 

K.G. é o criador do site “Ubu”, que abarca as diversas escolas e tendências em arte experimental e de vanguarda desde o início do século XX até os dias correntes]. Possui uma frase lapidar para justificar a sua inquietação: “não há nada pior do que ver a arte chafurdar em bugigangas berrantes”.

 

Ele percebeu que desde a manhã do modernismo, a experimentação é o mainstream em arte. Entretanto, com relação à Poesia, ele afirma, a experimentação é extraordinariamente conservadora e que está majoritariamente comprometida com a promoção de uma identidade autêntica e estável a todo custo. 

Segundo o poeta Bryan Gysin, a literatura está 50 anos atrás da pintura! Sempre, em qualquer época é assim.

 

Seu moto propulsor (ainda falo de Goldsmith) é “a não-criatividade como prática criativa”. Diz que podemos ser criativos e originais fazendo coisas “não-criativas” e “não-originais”, uma vez que ao se deslocar o contexto que suporta as palavras ele remove o significado, e assim, as palavras com o seu sentido comum retirado, por mais brilhante que seja, se transformam em objetos. Na poesia não normativa de hoje, as palavras e as frases (claro estamos no campo da poesia verbal) podem ser apropriadas, recicladas, citadas, sujeitas a novas formulações. Destrói a linguagem, mas ao mesmo tempo reconfigura-a, mudanças que já vêm ocorrendo em vários setores culturais em uma era de (re)produção globalizada, onde todos são autores potenciais. (como Lautréamont já havia previsto ainda no século XIX).

 

 

 

CONCLUSÃO

 

 

Efetivamente, há cerca de um século, o mundo da arte pôs fim às noções convencionais de originalidade e reprodução, com os readymades de Duchamp, os desenhos mecânicos de Francis Picabia, e o muito citado ensaio de Walter Benjamin, "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Desde então, um cortejo de artistas eminentes, de Andy Warhol a Mathew Barney, levou essas idéias a novos patamares, resultando em noções muito complexas de identidade, mídia e cultura. Isso se tornou de tal forma parte do discurso dominante do mundo da arte, que algumas reações contrárias, baseadas no genuíno e na representação, emergiram.   Há várias outras situações que não caberiam nesse sobrevoada, como por exemplo o sampling na música eletrônica, onde faixas inteiras são compostas a partir de outras faixas, tornou-se lugar comum, a Cultura parece estar adotando essas tecnologias. Uma época (em certo sentido distopica) em que finalmente existem as condições apropriadas para uma compreensão mais geral que o experimental aspirou através da rejeição de psicologismos e expressionismos - e cujo resultado acaba por nos dar, paradoxalmente, respostas mais "acessíveis" e "pessoais" do que, por exemplo, os trabalhos autorais exclusivistas das práticas tradicionais.

 

E termino com uma citação de Walter Benjamin: "estamos no meio de uma poderosa reformulação das formas artísticas, um colapso no qual muitos dos opostos pelos quais tendemos a nos guiar podem perder sua força”. 

 

A.H.

Rio de Janeiro, 2018 - 2019